sábado, 27 de dezembro de 2014

Enfrentar as memórias

Correndo entre o Passado recente e o Presente, Mustang Branco é uma história de permanente desfasamento.
Encontros actuais que trazem ao de cima tempos dos quais a protagonista nunca escapou porque foram os que a definiram.
Com a cabeça numa outra década e num outro país, a "Sardenta" vive de forma hesitante, sendo facilmente atraída para comportamentos impróprios - relativamente às suas convicções e às próprias leis.
Ela é uma mulher que nunca superou os sentimentos de rapariga. O amor não concretizado no momento em que este era mais intenso e marcante.
A menina volta a estar face a face com o rapaz que preferiu a sua irmã mais velha logo num tempo em que o corpo responde com maior exigência às emoções sentidas.
A confusão - sentimento que se confunde com o deslumbramento antigo - tolda-lhe o julgamento, deixando que ela se torne num peão de um plano alheio.
Só a custo de enfrentar a ameaça da Justiça e de encarar o que fez e porque o fez acabará por começar a recuperar o seu próprio discernimento a propósito da falta de esplendor de Caju, que então voltara à sua vida.
O crescimento da mulher vem com o custo do desmoronar dos mitos da criança que outrora foi.
Ao compreender que as suas memórias empolavam o pequeno mundo em que se movia e o homem com que sonhava, acaba por se redefinir como mulher, por se libertar de memórias felizes e dolorosas por igual, que a prendiam e a impediam de viver em plenitude.
Ainda que, pelo contrário, a sua atitude fosse a de alguém muito mais permissiva a impulsos, o que em teoria faria dela mais dominadora das suas pulsões - e pulsões sexuais.
Em geral o seu comportamento na actualidade é patético enquanto que em Moçambique nos tempos da Guerra Colonial estava mais perto da maturidade - forçada pela arrogância (primeiro) e pela ausência (depois) do pai.
Perto da maturidade em face da maturidade a resvalar para o disparate da sua irmã mais velha e mais afoita. Uma irmã que, num percurso de vida inverso ao dela, constituiu família e permaneceu em Moçambique, não fugindo às responsabilidades nem às memórias.
Embora não seja intencional, os momentos narrativos da história parecem acompanhar a realidade da protagonista.
No que tem de contemporâneo o livro cede a exageros e conveniências que o aproximam de um romance de cordel (aventuroso) enquanto no que tem de distante o livro é intenso e vívido - ora cruel, ora abusrdo.
A vida da protagonista apagou-se, daí que viva no Passado, mas o trabalho da autora deveria conseguir evitar que o mesmo acontecesse na relação entre capítulos de períodos diferentes.
Um percalço no trabalho de narradora que revela algum desajuste entre as ideias sobre um Moçambique onde o colonialismo se sujeitava à guerrilha da Renamo e as soluções encontradas para colocar as personagens num movimento de colisão inescapável na Europa actual.
Um percalço que não macula um talento notável que se pode sujeitas a algum vacilo de discernimento.
A escrita de Filipa Martins anuncia pertencer a alguém que está sempre a olhar para a realidade pelos olhos da sua vocação de escritora.
Alguém que constantemente olha à sua volta, registando o que vê para depois editar a sua descrição e assim tornar a realidade numa parte mais do seu trabalho de criação.
Ela deixa-nos com essa memória, a par de memórias quase reais de um Moçambique onde nunca poderíamos ter ido, o que só lhe acrescenta mérito.


Mustang Branco (Filipa Martins)
Quetzal Editores
1ª edição - Setembro de 2014
256 páginas

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Livro, esse formato errado

A propósito de Até que o Mar Acalme, independentemente das considerações sobre a obra, há algo sobre o qual reflectir num ponto de redefinição do conceito do Livro.
Na minha opinião esta obra deveria existir em muitos formatos excepto no formato de livro impresso.
Tal como está, o livro exige que o leitor se afadigue lidando com dois objectos ao mesmo tempo, o livro e um companheiro tecnológico: um smartphone para ler os códigos QR impressos em cada capítulo (ou, em alternativa, o CD que o autor editou).
Manipular ambos de forma coordenada não é agradável e, desde logo, retira o interesse pelo livro a uma geração não interessada na interactividade.
Tal como o retira a uma geração muitíssimo interessada na interactividade, que veria com melhores olhos que o livro estivesse em formato digital e as músicas fossem acessíveis directamente no seu interior.
Este livro deveria ser daqueles que existia exclusivamente em formato de livro digital, para ser lido num aparelho que corresse o texto e, ao mesmo tempo, permitisse ligar uns auscultadores.
A experiência que o livro pretende transmitir num único "objecto" e numa única forma de manipulação.
Mesmo um audiolivro era, aqui, uma solução muito melhor. Era a oportunidade certa para utilizar as canções numa verdadeira simbiose com as palavras escritas (e lidas, neste caso).
A canção tocaria por completo no ponto do capítulo onde estava situada mas ao longo do capítulo a melodia da canção poderia ser usada como acompanhamento de fundo.
Uma verdadeira banda sonora como o autor a imaginou que permitiria dar diferentes tonalidades e ritmos a uma mesma melodia para a cada momento do capítulo sugerir emoções diferentes e até para gerir a velocidade da narração.
Tal como existe, livro e música, a experiência é sempre bipartida. A leitura até um certo ponto e, depois e depois de uma transição de um objecto para outro, a audição da música.
Capítulos houve em que não tive a paciência de o fazer e me limitei a ler os versos da letra da canção (sempre impressos) deixando para mais tarde e à parte a audição da canção.
Continuo a ser averso aos livros digitais, limitando-os a um uso profissional ou a momentos em que nenhuma outra opção está disponível.
O livro continuará, para mim, a ser uma invenção excepcional e um objecto eterno do qual não abdicarei.
Mesmo em tempos pós-apocalípticos o livro servirá, no limite, de combustível, enquanto um leitor de livros digitais servirá de espelho...
Mas estou sempre expectante do próximo passo de aproveitamento das hipóteses que o livro digital apresenta. Passos que rasguem com o conceito aproximado que o livro digital continua a ter perante o livro.
Ainda que seja um livro desinteressante, este poderia ser o livro certo para conseguir ir mais adiante, tornando o processo de leitura numa experiência revolucionária que sugerisse um novo caminho para a própria criação de novos livros ou a "recriação" dos já existentes.
A partir dele quantos livros, mesmo clássicos, quereríamos ouvir com bandas sonoras criadas por músicos de enorme afinidade com os autores? Muitos, certamente.
Seria possível realizar com os livros o mesmo que já se faz com vários filmes mudos, por exemplo, criar obras sonoras inspiradas por eles mas capazes de os questionar pela modernidade das composições.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Da dissonância

A crítica a Até que o Mar Acalme sairá sempre fora do âmbito mais habitual da crítica literária, por levar em consideração a música que o acompanha e o distinge.
Não é o âmbito deste blogue fazer crítica musical e, portanto, tal não acontecerá. Apenas uma tentativa de avaliar o romance pela sua concretização em dois patamares artísticos.
Até porque uma crítica musical revelaria desde logo a incompatibilidade para com o estilo baladeiro enjoativo do autor que, mesmo assim, ouvi atentamente ao longo do livro.
Começando por falar exclusivamente do livro escrito, é um romance no sentido mais típico que a palavra hoje tem e que impeça que seja usada para toda a literatura.
Não é tanto pelas suas histórias de amor (em sentido lato) que o escrevo, mas pela sua dependência excessiva da serendipidade encaminhada para um final feliz apesar de alguns pontos de infelicidade.
Um conjunto muito limitado de personagens passam a vida em encontros e desencontros por si mesmos ou por intermédio dos seus parceiros.
Os casais - nem sempre amorosos - vão variando ao longo do livro, com o homem e a mulher dos casais que no final permanecem a terem fugido de infortúnios anteriores com aquela mulher e aquele homem que entretanto constituíram um outro casal.
Isto de permeio com uma porção de realismo extremo em que o desemprego coloca o protagonista na via de ser sustentado pela prostituição da mulher sem conseguir lidar com isso, enquanto outro personagem vê o seu casamento desfazer-se porque vive na expectativa de encontrar algo "mais" que só tarde demais perceberá que tinha em casa.
Este cruzar constante dos personagens tem sempre um estilo muito variado, indo do romântico em exagero ao divertimento provocatório.
Os capítulos dedicados aos diálogos entre dois amigos, homens, são os melhores com o autor a fazer uso de uma coloquialidade cheia de à vontade entre ambos. O reconhecimento da forma de intimidade por via de alguma dose de parvoíce acontece e consegue momentos divertidos.
Já os capítulos dedicados aos encontros românticos tornam muito evidente a origem de escritor de letras para canções do autor, com um abuso do lirismo sem efeitos práticos. O estilo de pensamento romântico, verbalizado ou não, está para lá da própria personalidade das personagens, não se distinguindo de umas para outras e não estando de acordo com a sua existência até aí.
Estamos muito mais perto de entender os capítulos como partes - canções? - individualizadas unidas pela retoma de personagens e não pela coerência da voz ou do estilo.
Nesse aspecto tenho, pelo menos, de reconhecer que este romance musical não é um artifício, é uma tentativa do seu autor de trabalhar a ideia de narrativa que se espraia pelos tempos vazios entre canções.
O problema é que as verdadeiras canções que ele escreveu estão quase em desacordo total com as "canções" que são cada capítulo.
Um desacordo de apreço, pois as canções que funcionam melhor são as de tema romântico que, pela sua brevidade e porque não estamos obrigados a crer que há poesia na pop, fazem melhor serviço do que os capítulos pouco interessantes a que correspondem.
Sobretudo, um desacordo de expressão. As letras e o próprio tom das canções chegam a contradizer o ambiente que o capítulo tentou expressar.
Não é necessário ir mais longe do que o primeiro capítulo que descreve uma cena de um homem à beira (literal) do suicídio e termina com o cliffhanger da dúvida sobre se ele o concretizará.
A música associada a esse capítulo (e que está no final do mesmo, o que é a forma mais habitual de surgirem associados) tem uma melodia animada e versos como Para um novo futuro/Que eu possa chamar meu.
A canção contradiz e elimina a tensão que o capítulo tentou criar, dizendo-nos que este personagem certamente continuará vivo por um qualquer milagre de último segundo (confirma-se!).
Lembramo-nos de um formato narrativo do cinema norte-americano mais mainstream que a noção de banda sonora pop só reforça.
A ideia interessante - ou não me teria disposto a ler o livro - teria de ter alguém mais capaz para a concretizar. Alguém que fosse tanto escritor como músico, experimentado em ambos os campos e capaz de trabalhar ambas as vertentes numa separação dialogante.
Miguel Gizzas fica-se apenas pela separação entre escrita e música.


Até que o Mar Acalme (Miguel Gizzas)
Gradiva
1ª edição - Setembro de 2014
292 páginas

domingo, 30 de novembro de 2014

Péssimo

Nunca tendo lido nada escrito por Frederick Forsyth não deixava de conhecer a boa opinião generalizada do seu livro O Chacal que deu origem a um filme que, esse sim, conheço e acho bem executado, The Day of the Jackal.
Por isso decidi-me a pegar neste A Lista da Morte e descobrir quais as qualidades que o tornaram reconhecido e que ele parece aplicar à realidade política contemporânea.
Mera curiosidade e nenhumas expectativas relativamente ao trabalho do autor e, mesmo assim, acabei desapontado.
Começo pelo mais notório, a escrita, que é causa de aborrecimento primeiro e sofrimento depois.
Se quiser ser bondoso direi que tem a falta de emoção que se aplica num relatório.
Se quiser ser maldoso direi que tem a falta de qualidade com que um jovem estudante despacha as suas composições.
Raramente Forsyth gasta palavras a trabalhar as emoções de uma personagem ou a sua personalidade, a sua tentativa é a de construir um realismo assente nas acções executadas.
No momento em que isso significa páginas consecutivas de descrição de como se prepara o equipamento para um salto de pára-quedas e um único parágrafo para descrever uma personagem com chavões, o realismo não resulta.
Falando de chavões, essa forma de usar as personagens em que elas são nomes humanos para engrenagens da trama, demonstra que o autor apenas consegue pensar no esqueleto do livro, quase se sentindo obrigado a entregar alguns dos seus desenvolvimentos a personagens.
Não há sequer uma ideia de trabalho literário neste livro, de tal maneira que as duas personagens centrais - que se deveriam estar a gladiar no tabuleiro da espionagem moderna - recebem nomes que são descritivos da sua função: Batedor e Pregador.
A lista dos nomes das personagens é, aliás, aquilo com que o livro abre e que permite que Forsyth nunca mais tenha de voltar a aplicar-se em tratá-los por outra coisa que não a sua patente.
Aliás, mesmo com as personagens reduzidas a ideias gerais, Forsyth consegue enganar-se em detalhes que os caracterizam.
Pouca atenção ou pouco interesse, mas a falta de consistência ao longo do livro tanto com os dados como com as personagens é talvez o aspecto mais grave de todo o mau trabalho feito.
Cada um destes elementos separados já a tornariam dura, mas em conjunto minam por completo a leitura do que deveria ser um estruturado thriller cheio de ligações.
Descarnado, não é mais do que uma história de um bom, um mau e os diferentes ajudantes a que podem recorrer.
Em vez de complexo o livro começa a parecer absurdo, ligando um terrorista islâmico a um tresloucado pirata somali ou um agente americano de topo a um adolescente que é o melhor hacker de que ninguém ouviu falar.
Impressionante é ainda haver algumas boas ideias no meio disto,
Como aquela em que os Americanos usam a sua arte cinematográfica para combater os terroristas no seu meio de divulgação favorito e desacreditando-os em vez de os bombardearem.
Uma visão da necessidade de inteligência e subtileza acrescidas que o jogo do contra-terrorismo cada vez mais exige entre as artimanhas dos inimigos e a consciência da sociedade.
São poucas essas boas ideias e ficam afundadas nas areias movediças de uma péssima narração - a todos os níveis!


A Lista da Morte (Frederick Forsyth)
Bertrand Editora
1ª edição - Julho de 2014
312 páginas

sábado, 29 de novembro de 2014

Informação e intenção

Vito Bruschini é um militante da sua própria consciência e, por isso, o que de mais interessante tem o seu livro é a informação que ele revela sem medos ou hesitações, mesmo que parte dela seja trabalhada como ficção.
As suas convicções são o motivo pelo qual escreveu um thriller sobre o domínio empresarial do mundo a partir do controlo da agricultura e da fome por todo o mundo.
O livro é muito interessante no seu início, criando um sentimento de tensão por conta das maquinações de uma sociedade secreta.
Se os planos lá descritos não foram reais, poderiam bem ter sido, com as consequências reais - ou, pelo menos, realistas - descritas no livro.
Atravessando décadas de acontecimentos que sugerem, sem dúvida, conspiração e manipulação, o livro vem até aos nossos dias e a uma sugestão de intenções perniciosas para acções de generosidade humana aparente tomadas pelas grande empresas.
Este entretenimento tem um lado de exigência ao leitor para que deixe de estar desatento e tente obter mais informação em fontes que a tratem como tal.
Não que depois dessa pesquisa se venha a colocar de lado o trabalho do autor - que é jornalista - neste livro, até porque como se tem visto o mundo acaba por procurar e receber cada vez melhor informação a partir de meios de comunicação que utilizam o divertimento como embrulho para ela.
Só mais tarde, a caminho do seu final, é que o livro toma contornos mais comuns, com impossíveis cenas de guerrilha protagonizadas por um grupo de amadores.
A substância que até aí enchera o livro desaparece para dar lugar às cenas de acção.
Aí o interesse do livro esmorece até porque Bruschini não é um executante exímio do género, mas sobra algo assinalável.
Um detalhe que o destingue e que o mostra ainda fiel aos seus princípicos de militância, o de trazer para o papel de heróis um grupo de terroristas com cujas intenções ele claramente se identifica.
Ou talvez seja o grupo a manifestação das suas intenções, a recuperação de um engajamento activo contra a cultura
Faz lembrar um Baader-Meinhof-Bande de índole mais bondosa mas com a mesma determinação, como se o autor tivesse algo como um sentimento de saudosismo com revisão utópica do que foram décadas passadas de luta contra o fascismo corporativo.
O livro não termina com heroísmo, termina com uma admissão de impotência. A ingenuidade não tem lugar neste mundo pois também disso podem as corporações servir-se para atingir os seus fins.
Se a intenção é apenas de alerta ou se há mesmo um incitamento ao retorno de um activismo político mais feroz, talvez só o autor possa garantir.
A maioria dos leitores ficará, sem dúvida, apenas pela qualidade da informação e de como ela é trabalhada em forma de conspiração.


Os Segredos do Clube Bilderberg (Vito Bruschini)
Clube do Autor
1ª edição - Julho de 2014
420 páginas

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Por melhorar

Décimo sexto volume da saga de Alex Cross e há uma conclusão a tirar, mesmo sem ter lido todos os volumes para trás: isto já não é um policial.
Alex Cross já não é trabalhado aqui como o grande detective que, noutros volumes, se sente que ele terá sido.
Fisicamente e mentalmente imponente, Alex Cross faz cada vez menos trabalho, passando mais tempo a correr de arma em punho atrás de informações que lhe são dadas em vez de ele ter de as procurar.
Claro que há uma grande trama sobre como um político importante tem matado mulheres e os seus corpos são desfeitos num triturador de madeira.
Só que, tirando um final curioso em que o "ao serviço da nação" toma proporções interessantes, a trama funciona numa espécie de visão genérica de thriller de Thomas Harris com promessas de horrores e personagens arrebatadoras por todos os motivos (humanamente) errados.
Nem os horrores nem as personagens são explorados, substituídos por um avanço constantes da acção.
Aquilo em que James Patterson se foca a propósito da sua personagem é a família, numa exploração cada vez mais sentimental que parece ter invadido esta saga a partir de outras das suas obras mais recentes.
Desde logo ao colocar como primeira vítima uma sobrinha de Alex Cross, personagem que não chegamos a conhecer bem, mas que é capaz de colocar em polvorosa o detective que irá lutar mais vincadamente contra o secretismo do FBI e da NSA.
Essa personagem poderia ter sido uma mulher anónima pois na verdade o efeito emocional que ela traria a Cross seria, como é, sempre suplantado pelo causado pela ameaça de morte eminente que paira sobre a avó do protagonista.
A dirupção na família é o melhor componente deste livro e o que deveria ser um mecanismo secundário acaba por disputar o protagonismo com o restante.
Na verdade, ganha mesmo esse protagonismo porque é aquilo em que as personagens melhor são aproveitadas.
O que deveria acontecer é que a tragédia familiar deveria afectar os poderes de investigação de Alex Cross, mas como este não está a usá-los o drama acaba por funcionar por si só.
A velha senhora sobrevive ainda mais uns volumes pois parece ser o pólo oposto do detective nos momentos das discussões.
É duvidoso que ela alguma vez venha a morrer mas devia. Sobretudo neste volume, onde a sua morte teria adicionado ao drama do detective e obrigado-o a transformar-se o que daria novas possibilidades à série.
Está necessitada de se recentrar em casos que aproveitem a totalidade das capacidades do detective permitindo-lhe alguma amplitude de decisões no que concerne à família. Para o bem e para o mal, a avó dele continua a ser uma âncora para Cross.
Não deixa de ser um daqueles livros cujos capítulos curtos funcionam muito bem enquanto se viaja em transportes públicos.
Deveria ser mais do que isso mas James Patterson parece estar demasiado mecanizado num processo de criação que não lhe permite fazer mudanças importantes.


Eu, Alex Cross (James Patterson)
Topseller
1ª edição - Outubro de 2014
384 páginas

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O progresso

Este livro é aquilo que se exige de uma sequela, não só por ser melhor que o livro do qual provém, mas por dar origem a uma escalada dos elementos mais interessantes d'O Jogo.
Anders de la Motte não tentou revirar a situação do seu protagonista de forma a que ele voltasse ao ponto de partida e estivesse envolvido em mais uma saga de acções irreflectidas e perigosas com transmissão directa online.
A questão do egocentrismo individualista potenciado pela internet fica de lado para que o autor possa evidenciar mais fortemente que o seu verdadeiro interesse está no domínio que é possível exercer sobre o indivíduo através dos novos modelos de comunicação.
Um domínio que era mais imediato no primeiro livro e que neste segundo livro tem traços de realismo.
Realismo corporativo que já sabemos ser verdade, até num pequeno país como o nosso, o da manipulação da opinião pública.
Orientação das "massas", criação artificial de movimentos, desvio de atenção para dar oportunidade a que decisões verdadeiramente importantes se mantenham secretas.
Muito se aprende sobre as dificuldades inerentes a um trabalho deste tipo quando se quer que seja bem feito e com a amplitude que a internet exige.
Longe de um teor didáctico, de la Motte usa as tácticas mais banais pelas quais se executam essas intenções para criar o sentido de urgência que é necessáro à leitura.
A escrita em fóruns e blogues e a criação de múltiplas identidades internéticas ganham emoção na visão que o protagonista tem delas e funcionam como cenas da máxima emoção.
Isto não quer dizer que o autor tenha deixado de lado as grandes cenas que se espera de um thriller.
Na verdade ele continua a ir a alguns momentos de exagero em que o seu protagonista se coloca a par dos heróis de acção dos tempos modernos.
Só que tais cenas deixaram de ser parte uma parte tão significativa do livro - como foram com o primeiro - para passarem a estar ao serviço de uma construção mais laboriosa e progressiva.
Só a limitação da sua estrutura se mantém, com os pontos de vista intercalados a levarem-no a criar, por demasiadas vezes, uma coincidência das situações que HP e a irmã vivem, propositadamente confundíveis entre si pela forma como a escrita é trabalhada, sem que verdadeira tensão nasça desse efeito.
O salto que falta a Anders de la Motte para ser um escritor a seguir com total atenção não será dado com Bolha, o próximo e final tomo desta história, mas confio que um passo mais adiante no tema garantirá uma leitura intensa.
Afinal tudo começou com um jogo e já chegou ao ponto da conspiração política. Onde acabará interessa aos leitores.


Vibração (Anders de la Motte)
Bertrand Editora
1ª edição - Maio de 2014
400 páginas

sábado, 22 de novembro de 2014

Quando o confronto é a resposta

A combinação do ambiente gótico e da literatura policial que Marc Pastor traz para A Mulher Má evoca com elegância as obras de Edgar Allan Poe, autor que o Espanhol não deixa de nomear ao longo das suas páginas.
Parece ser o estilo devido a uma Barcelona no início do século XX em plena fase de transição, tentando albergar tanto o progresso como a memória mas na qual primeiro parece ter-se espalhado a vilania.
A vilania sempre se apropiou da modernidade antes da restante sociedade, pelo que tal momento de transformação é excepcional para o trabalho de Marc Pastor.
O estudo do Mal que faz a partir da história verídica de uma raptora de crianças fala de um crime inimaginável para aquele período. Executado pela mão da mais inesperada vilã, uma mulher também já mãe.
Esse estudo tem maior impacto porque é feito contra a ingenuidade envolvente, em que as pessoas confiavam que tudo correria bem com as suas crianças.
O nível de confiança rapidamente afectado pela crueldade nunca antes vista - ou não lembrada, pois a humanidade tende a deixar-se surpreender por ela de tempos a tempos - e transformando-se num nível de preocupação demasiado elevado que já se ameça transformar em vigilância restringente.
Se o Mal existe e se manifesta de forma sempre nova, há que garantir que a consciência dele também evolui, mas tentando evitar que ela própria se transforme numa forma de Mal (menor, talvez).
Uma luta pela preservação de algo de verdadeiramente Bom que resista imutável contra cada novo passo do mundo.
Neste livros isso traduz-se em pequenas batalhas.
O século que terminou em confronto com o que acaba de começar. A razão contra a cren(dice)ça. A evolução contra a pulsão.
Marc Pastor reforça esse confronto entre a assombração e a realidade do Mal fazendo Edgar Allan Poe dialogar com Dashiell Hammett.
Moisès Corvo, detective da polícia que investe mais de si do que é suposto e que não consegue aceitar a fraca resolução do caso, é o Sam Spade d'A Mulher Má.
Se um nome excepcional faz metade do personagem, então este detective poderia quase de imediato entrar na galeria de grandes protagonistas do Policial.
Está perto disso, visto que Marc Pastor trabalha os seus diálogos fazendo justiça a Hammett e às gerações que influenciou, dando uma verve às disputas do detective que se saboreiam como nos melhores noir.
Infelizmente não chega a inscrever-se nessa galeria. O detective acrescenta muito ao livro, um sentido de propósito e uma força motriz para muitos capítulos, mas não recebe de volta a devida atenção por parte do autor. Como personagem é tratado apenas por fogachos.
Parte da culpa para tal está no facto da atenção de Pastor estar dividida entre os elementos essenciais da sua história e um que ele adicionou crendo-o como tal sem razão. Falo da sua escolha para narrador da Morte.
Uma escolha que vem adicionar uma espécie de sentido de magia ao seu livro, sem que esse seja realmente necessário pois o ambiente gótico e amedrontante prevalece sem necessidade de tal narrador.
O seu único benefício - e chamá-lo assim é duvidoso - é o alívio que proporciona ao contribuir com humor negro (novamente o talento de Marc Pastor para as palavras das suas personagens) e bastante ironia nascida da relação conflituosa entre a sua função e a sua presença entre humanos.
Continua a tratar-se de um artifício. Não resultava em A Rapariga que Roubava Livros - nem, numa aproximação do mesmo ãmbito, em Visto do Céu - nem resulta aqui.
Funciona como um elemento de distracção para o leitor (em parte) e para o escritor (sobretudo) daquilo que é o cerne do trabalho do romance.
Melhor seria ter um livro dedicado inteiramente à Morte como protagonista de uma vivência atemporal com visitas ao nosso pequeno mundo.
Acaba por deturpar a memória do que foi o livro, um policial gótico explorando a essência do Mal, mesmo se não impede que se recomende vivamente a sua leitura.


A Mulher Má (Marc Pastor)
Topseller
1ª edição - Setembro de 2014
254 páginas

sábado, 15 de novembro de 2014

Querer mais

Ao primeiro policial protagonizado pelo Inspector Montalbano fiquei com a crença de que Andrea Camilleri é um génio.
Até hoje cada uma das suas obras tem provado isso mesmo e cada vez mais as suas obras fora do formato daquele género.
Têm sido algumas as obras curtas traduzidas por cá, mas cuja perspicácia acerca da condição humana rivaliza com a dos grandes romances.
Sem desperdício de qualquer palavra, sem excesso de qualquer expressão, Camilleri escreve tal como é: um homem sábio cuja idade já não lhe permite derivas ou falhanços, apenas obras exímias.
Obras nascidas da visão em simultâneo conciliadora e de confronto entre a estranheza da realidade que vê à sua volta - e se Itália é terreno fértil para tal! - e a familiaridade das mais arrojadas criações literárias.
Desta vez dedicou-se a explorar a ruptura de crescimento causada pela diferença entre a exigência que a sociedade faz e o desejo natural. Através da história de uma rapariga com corpo de mulher.
Um princípio clássico das histórias escabrosas que falam dos mais primitivos instintos humanos e que não deixam de remeter para os mesmos temores para os quais os contos recolhidos pelos Irmãos Grimm já alertavam.
Ainda que faça pensar no enorme retrocesso que representa este tormento que os homens continuam a colocar sobre as mulheres, este não é um alerta feito livro.
Este é um recontar muito original de um certo comportamente feminino que se perpetua a partir do desfasamento demasiado intenso entre a mente e o corpo.
Neste caso uma mulher escolhida para ser exibida por um marido incapaz de fazer sexo mas que a ama ao ponto de lhe proporcionar jovens amantes.
Uma mulher que não consegue deixar de se envolver emocionalmente com um desses amantes a prazo, revelando a sua infantilidade emocional de quem confunde bom sexo com paixão.
Esse amante, um adolescente ele próprio, tudo fará para a persuadir a continuar o jogo de sedução, até ao ponto em que ela acredita que é amor aquilo que vivem e se sente capaz de partilhar o seu mundo secreto.
Vindo da sua infância interrompida, esse mundo secreto aglomera a imaginação infantil com a perversidade adolescente, componentes da sua personalidade que lhe ficaram vincadas logo abaixo da superfície mais visível do seu comportamento.
A quebra do seu desenvolvimento e todas as etapas fora da normalidade que enfrentou apenas por ser mais bela do que as restantes - ou ser bela mais cedo do que as restantes - levam a que a sua percepção confundo todos os polos que encaramos com naturalidade.
Seja realidade ou imaginação, seja bem ou mal, para ela tudo é indistinguível e existe continuadamente. Tal como para os homens da sua vida ela ser menina ou mulher, ser esposa ou amante, ser dela mesma ou de todos os que a queiram, era o mesmo.
Daí nasce a grande tragédia deste livro - na verdade tragicomédia - cheia dos actos extremos que nascem do despeito e do calculismo.
O resultado mantém o leitor sempre a exaltação no leitor, dando-lhe doses renovadas de surpresa escrita com uma beleza que não está orientada para a exibição mas para a precisão.
Não sei quantos exemplares de cada livro de Andrea Camilleri vende, mas é uma preciosidade que a Bertrand continue a publicá-lo entre nós.
Infelizmente ainda não o faz com a mesma cadência com que ele os escreve, vários por ano como se estivesse numa luta contra o tempo para nos legar todas as maravilhas que tem dentro da sua mente.


O todo-meu (Andrea Camilleri)
Bertand Editora
1ª edição - Junho de 2014
152 páginas

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A doença da descoberta

À loucura branca que Jaime Rocha ficcionaliza associamos facilmente o ruído branco, um esconderijo social em que todos disfarçam a sua normalidade sob a capa de uma originalidade distintiva.
Cada um reivindicando para si a peculiariedade que o torna único, que o salva da norma que dilui cada pessoas nas restantes.
Até que, subitamente, a fatalidade transforma a sua vítima levando a que a verdadeira loucura se alastre pelo corpo e tudo altere em favor daquele que é agora o portador de uma visão privilegiada.
A partir daí passa a conseguir encarar o mundo de uma forma nunca antes vista, aquela massa de falsos loucos desaparecida para uma meticulosa descoberta da novidade de todos os espaços anteriormente visitados.
Só que a descoberta vem carregada do assombro do terrível que existe em redor de cada um e que está oculto a maior parte do tempo.
Logo essa descoberta o empurra para o receio de um desconhecido que deveria ser familiar por estar contido no mais essencial do ser humano.
O mundo tal como ele verdadeiramente é encerra Vítor sobre si próprio. As paredes da casa de onde não sai há meses são apenas um símbolo disso mesmo. Um símbolo palpável que ajude a melhor avisar o personagem da sua condição.
O cancro mestatizado de que sofre não é só uma causa das suas aflições, é a expressão potenciadora das suas novas capacidades.
Uma libertação da mente por sacrifício do corpo, os sentidos potenciados até ao sacrifício. Sobretudo a visão, perdida depois da descoberta do mundo para lá do mundo.
Definitivamente encerrado em si mesmo, no negrume de si mesmo, pode ele deixar-se ir: prosseguir por mão alheia o caminho de libertação.
Esse caminho tem apenas uma forma de ser percorrido. O término do caminho é o término do homem e logo aí o peso da falsidade se esfuma.
A loucura construída para diferenciação - que tudo deforma e constringe - desaparece. A falsidade do ruído de fundo mental deixa de poder isolar Vítor.
A verdadeira loucura torna-se a situação aceitável e isso cria nos que ficam por cá o incómodo do entendimento.
O inconsciente como monstro perpétuo de um homem. Assombrado pelo surrealismo daquilo que consegue imaginar mas que recusa por obrigação social.
Há algo de Kafkiano em Jaime Rocha, sem lirismos desnecessários mas com a expressão mundana de algo extraordinário e perturbador.
Este seu livro, gigante na sua brevidade, tem um poder literário que nos condena à memória e nos obriga à revisita. Que maravilha de livro.


A Loucura Branca (Jaime Rocha)
Relógio D'Água Editores
Sem indicação da edição - Maio de 2014
112 páginas

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Problema de escala

Robert Harris é um excelente ficcionalista da História, capaz de criar interesse até num episódio desconhecido e cuja relevância parecia escassa para este leitor.
O seu trabalho de transformação da espessura da investigação num escorreito relato é tao eficaz que consegue fascinar o leitor ainda com poucas páginas lidas.
A sua exploração desses erros imensos que os homens tentam esconder na sua pequenez mas que marcam a memória da Humanidade é feita com a perspicácia de quem está a desvendar um mistério à medida que escreve, embora o desfecho lhe seja já familiar.
O genuíno interesse do autor pelo tema transmite-se ao leitor e permite-lhe arriscar fazer mais do que meramente recontar o Passado.
Através dele permite ao autor julgar o Presente e afirmar a persistência nos actos menos nobres.
Mostrando que no século XXI se repetem as mesmas estratégias indignas do século XIX, com os "espiões" a manipularem informação para justificarem os seus preconceitos, a interpretarem a realidade consoante quem queiram que ela sirva e a contornarem os mais primários conceitos da Justiça em favor das suas próprias intenções.
A única mudança foi a escala, naquela altura estando acusado um homem (mas um representante de todos os judeus, já vilipendiados) e por estes dias estando acusados povos inteiros.
O escrutínio ficcional dos métodos de então adiciona sentimentos à análise objectiva do que correu mal (eufemismo para a intencionalidade do erro humano), intensificando o espanto pela tão longa demora até ao surgimento de um paladino casual em defesa de um homem tão evidentemente inocente.
E até mais do que a demora, a falta de inteligência de tantos para interpretarem a informação à sua frente com correcção, o que reforça o medo de que estejamos sempre sujeitos à interpretação errónea de um qualquer bem intencionado funcionário: patriótico mas pouco inteligente!
A História pela pena de Harris é um romance sábio que transforma o Passado no prenúncio do Futuro.
Aquilo em que Robert Harris não é excelente - e por vezes é até sofrível - é no seu trabalho com os personagens centrais.
Valha a verdade que a amostra é pequena até agora, com apenas um outro livro lido além deste, mas os problemas são os mesmos, a escolha de um ponto de vista que não é o mais benéfico a longo prazo e a incapacidade para transformar o personagem que nos conduz numa figura que ganhe corpo a partir da folha.
Picquart, o militar/espião que aqui luta pelo reconhecimento da inocência de Alfred Dreyfus que ele próprio foi capaz de fazer, atravessa o livro sem se destacar por um traço de personalidade mais vincado.
Em certos momentos é um amante apaixonado, noutros um militar que deseja a elevação do Exército que integra. Chega mesmo a ser alguém com uma relação exageradamente perspicaz para com o homem acusado de traição.
Não era necessário que ele surgisse como um mártir (que em parte foi) ou um herói, apenas como alguém com uma razão interior precisa para a forma como encara esta sua missão.
Esta sua adaptabilidade constante, que serve as necessidades da trama e as alterações de contexto de cada momento, nunca lhe permite coerência - que não se deve confundir com imutabilidade - existencial.
Aliás, se há um traço do seu carácter que parece persistir com o leitor é o de indiferença final para com tudo o que faz, como se fosse um sociopata funcional. Pena que não seja intencional.
No final do livro, quando os eventos já se esgotam, Picquart não se mostra capaz de levar o leitor adiante. Os últimos capítulos têm o peso de uma obrigação.
Esse desequilíbrio entre a personagem que é o próprio corpo da História e a personagem que é apenas a condutora do livro é o que impede que estejamos perante uma obra imprescindível.
Talvez esteja a ser por demais exigente, mas apesar do meu interesse em Robert Harris ter aumentado com mais este livro, sinto que ele ainda não cumpriu com o que vais deixando antever ser capaz.


O Oficial e o Espião (Robert Harris)
Editorial Presença
1ª edição - Junho de 2014
496 páginas

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Plano semi-falhado

Perante uma premissa pouco habitual como é a de contar o processo de preparação de uma mulher para o parricídio - e não de dar o protagonismo a um assassino, algo que mesmo em Portugal já foi feito - o interesse é natural.
O processo de convencimento de si mesma, a experimentação com métodos de morte e a pesquisa amadora de como proceder para não ser descoberta são os momentos de enorme interesse que exalam um realismo importante para sustentar essa linha mais exagerada do livro contra o seu pano de fundo assente na realidade quotidiana.
Para chegar do impulso inicial à planificação eficaz, a protagonista utilizará o método que é o mais óbvio porque é o único de que é possível lembrarmo-nos: o recurso à ficção sobre assassinos (neste caso com prevalecência e Dexter).
Sem dar à protagonista acesso a um assassino profissional com desejos de tomar para si uma aprendiz, a autora consegue manter credível esta sua exploração da violência doméstica a partir do ponto de vista da libertação pela vingança - e libertação porque superação seria uma avaliação demasiado ousada.
Conhecemos tal violência pelos olhos da mulher que quer vingar-se dos maus tratos do pai, que quer honrar a mãe que não conseguiu proteger antes, que quer salvar os irmãos mais novos ainda sob o domínio daquele homem e que quer proteger a madastra que agora vê sofrer no papel que fora da sua mãe.
Esse aspecto torna-a digna do nosso entendimento e da nossa solidariedade, levando-nos a aceitar dela uma situação cuja moral é intencionalmente dúbia e a cuja ilegalidade é clara.
Por isso mesmo toda a trama paralela de resolução de um crime em que ela se envolve, e que pretende reforçar a ideia de uma subjugação social das mulheres pela violência, surge como um acréscimo desnecessário.
A trama policial está elaborada de forma razoável e obriga a que a protagonista e a sua colega jornalista mostrem talento ao mesmo tempo que uma detective - que tem uma atitude de antagonista mas que acaba por delas se socorrer - se mostra muitas vezes mais comprometida com os seus ressentimentos do que com o seu trabalho.
O mistério apenas satisfatório acaba por roubar o foco da autora para os momentos melhores do livro que são aqueles em que há um relatório na primeira pessoa dos esforços infrutíferos e das pressões inesperadas que a protagonista tem para aprender a ser uma assassina pela via de uma certa cultura popular.
O policial atrasa - e rouba páginas - ao thriller de terror psicológico que tem um interesse adicional por haver a pressão do pai sobre a filha - contado em recordações - e por haver a pressão da mulher sobre ela própria - não só para cometer o crime num apertado período, mas também pela forma como mina a sua própria felicidade -, criando-se assim uma situação mais interessante a pedir uma análise dos efeitos da violência que as vítimas perpetuam em si mesmas.
Como a investigação policial apresenta duas personagens adicionais que deveriam ter um destaque equiparado ao da protagonista se a ideia fosse que todas elas representassem uma dimensão diferente do combate contra a opressão masculina (mais do que violência doméstica).
Só que o verdadeira cerne do livro é a história de como uma filha se prepara para assassinar o pai e isso reduz as outras duas mulheres a pouco mais do que estereótipos representando outras versões de subjugação que, mesmo assim, obrigam a desvidos à principal orientação do livro.
Apesar do caminho paralelo de ambas as histórias que se aproximam - não se sente que se toquem de verdade - no final, o livro está partido entre elas, com o assassinato por resolver a diminuir o alcance do assassinato por executar.


Quando o Ódio Matar (Carina Bergfeldt)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Junho de 2014
384 páginas

terça-feira, 7 de outubro de 2014

É só isto?

Murakami nunca me despertou qualquer ténue ponta de interesse, mesmo depois da apaixonada recomendação feita por amigos leitores que respeito.
Entre as vendas fartas e a constante ameaça de Nobelização do escritor julguei que seria altura de conhecer aquilo que produzia tais efeitos.
Uma compilação dos seus contos iniciais pareceu-me uma base de partida melhor para conhecer o autor do que um dos seus "romances aclamados". Porque a partir deles o autor só poderia ter melhorado, porque a partir deles a sua identidade só poderia ter sido apurada.
Com essa percepção, chegava ao livro com a sadia abertura de espírito para o "desconto" a dar à experimentação imberbe do autor.
Pouco durou essa abertura de espírito, abafada por uma compreensão da monotonia das pequenas obras do autor.
Parece-me inusitado que um dos autores mais elogioado pela sua diferenciação e originalidade não tenha produzido, ao longo de duas décadas, um único conto a que se possa reconhecer a sua "Voz" original e única.
Nem estou a entrar em conta com as obsessões pelos detalhes em torno dos quais ocorre a modulação de cada narrativa: frigoríficos, esparguete, orelhas, cerveja.
Foco a recorrência temática de desencontros dialogantes entre perfeitos desconhecidos (mesmo quando são amigos ou amantes) e de momentos de dissonância da vida quotidiana aceites (de início) com uma naturalidade mundana.
De tal forma são recorrentes que ao longo deste livro Murakami esteve muito perto de escrever o mesmo conto por duas vezes, variando ligeiramente a ideia inicial.
Sendo importante frisar que as suas ideias de partida costumam ser interessantes, exercendo um fascínio que nasce do inesperado com um toque de bizarro.
O problema está em que dessas ideias ele não avança senão para uma manutenção dessa bizarria sem a concretizar - e por concretizar entenda-se usar em favor de uma ideia final de cada conto.
Nenhum dos contos merece o epíteto de surreal - muito menos de Kafkiano! - pois estes limitam-se a ser vagos.
Ao invés de parecer que os sentidos mais profundos dos contos são abstracções escondidas ao nosso consciente imediato, a leitura revela antes a possibilidade de Murakami ter feito a criptação (em estranheza) do seu próprio falhanço em dar corpo integral às suas ideias.
Quase sempre parece que o autor está a fugir das melhores hipóteses que a sua escrita lhe apresente apenas para manter a narrativa permanentemente em aberto.
Sono, conto promissor mas desapontante, é um exemplo claro deste estado da escrita, partindo para a crítica social ao desperdício da existência e terminando como uma cena de terror sem término nem ligação ao que veio antes.
A propósito disso acaba-se a pensar nas derivas narrativas de alguns personagens a meio de contos pertencentes a outras. O que poderia ser uma ferramenta ocasional torna-se numa estrutura recorrente do autor que parece apostado em construir uma identidade de reconhecimento imediato - para o exterior.
Só mesmo o último conto, que dá título ao volume, chega a escapar a esta geral banalidade encoberta.
Um verdadeiro mistério existencial capaz de falar da sociedade japonesa, com algumas particularidades locais e bastantes traços geograficamente restransmissíveis. Mesmo não estando livre de tudo o que descrevi acima a propósito da escrita do autor, não deixa de ser o esforço mais conseguido e menos padronizado dentro do livro.
Sendo que alguns destes contos parecem ser a base dos seus esforços futuros e longos - deduz-se pelos títulos - não acredito que deva esperar muito mais do autor do que aquilo que já aqui dele compreendi.
Não enjeito a possibilidade de vir a ler um seu "romance maior" como tira-teimas, mas não farei um esforço para tal e iniciarei a leitura já cansado dos tiques literários do autor.


O Elefante Evapora-se (Haruki Murakami)
Casa das Letras
4ª edição - Setembro de 2010
360 páginas

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Surja mais vezes

Este é o livro que se deveria ter seguido a Morte com Vista para o Mar, o livro em que Gabriel Ponte progride das saudades da investigação provocadas pela sua assistência ao caso da ex-mulher para uma tentativa de se tornar num detective privado.
Ao bom estilo dos polícias caídos em desgraça, um detective privado sem licença e dependente de favores antigos que nem deveriam ser cobrados.
Algo particularmente interessante num país onde o conceito de detective privado parecer não estar legislado.
Contratado por dois Romenos em busca de uma rapariga, Gabriel Ponte tem de mover-se nos limites da Lei, umas vezes do lado correcto para poder recorrer aos seus conhecimento na Polícia Judiciária, outras do lado errado para poder actuar como a polícia não pode.
Tudo mantendo uma fidelidade moral ao seu sentido de rectidão que será inevitavelmente testada contra uma rede criminosa bem urdida e sem quaisquer escrúpulos.
Depois de no primeiro livro ter surgido um retrato onde o pior do Portugal actual intersectava o mais mesquinho do Portugal de sempre, Pedro Garcia Rosado proporciona agora um retrato mais amplo de uma Europa onde todos os negócios se tornaram possíveis e que, por isso, deixou de ser criteriosa, tornando os países periféricos em entrepostos de todo o tipo de itens, até os que não o deveriam ser.
Mesmo que o vilão deste livro seja uma espécie de líder de cartel, muito organizado e cheio de artimanhas, acaba por ser este o tipo de realismo a que se deve aspirar nos livros de Ponte.
É um mafioso e, ao mesmo tempo, um líder comunitário influente, capaz por isso de se mover nos mundos visíveis e subterrâneos onde o poder se perpetua.
Um realismo não tanto da história, mas do contexto da mesma, que mantendo-a assente na realidade presentes impede que se torna num chorrilho de exageros (como no caso das ruínas de um coliseu romano tornado em ringue de combates até à morte de Morte na Arena).
Tem de se apontar ao autor uma falha, ainda assim, um retraimento nas descrições das "cenas chocantes" a que a história dá origem.
Não por um valor de "choque", mas para retirar o leitor do seu conforto e com essas cenas levar o leitor a uma reflexão para lá do fim do livro. Além de terem todo o potencial para reforçar o carácter dos personagens.
O aviso na capaz é um chamariz que não se sente estar justificado, tendo os mesmos efeitos de distorção de uma classificação etária excessiva atribuída para proteger algum do público potencial.
No restante é a qualidade de Pedro Garcia Rosado a proporcionar uma história coesa e repleta de tensão continuada - depois de um segundo livro em que parecia gerada de forma artificial através de alguns episódios mais trabalhados.
Sobretudo com o aproveitamento de personagens secundárias como (e sobretudo) Ulianov, vindo de uma outra saga de livros do autor.
Este aspecto, que já se verificava no livro anterior, denota uma inteligência do autor que capta o interesse de leitores agora chegados para os seus livros anteriores.
Ainda mais interessante é a maneira como essa utilização de personagens de um micro-universo para outro criam uma sensação de macro-universo ficcional em potência no qual o cruzamento de protagonistas poderia gerar novas hipóteses, de multiplicação das linhas narrativas e de avanço da extensão geográfica da acção.
Parece-me, estruturalmente, o melhor dos três livros lançados até ao momento mesmo se acaba com um cliffhanger exagerado - de novo Ponte como herói de acção e não o personagem que já foi contruído - que precisará de uma explicação muito boa.
Fica-se em suspenso mas com a certeza de se vir a reencontrar Gabriel Ponte. E. quanto a isso, não há dúvidas de que é o que se quer!


Morte nas Trevas (Pedro Garcia Rosado)
Topseller
1ª edição - Maio de 2014
352 páginas

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A parte da indiferença

O segundo livro protagonizado por Gabriel Ponte é o verdadeiro thriller anunciado a propósito desta nova saga de Pedro Garcia Rosado.
Repleto de cenas passadas em túneis subterrâneos onde elementos de equipas de intervenção da polícia se têm de confrontar com um adversário inesperado e feroz na luta corpo-a-corpo.
Cenas essas que surgem no interior de uma história onde a ganância e a violência se combinam num espectáculo - rentável e ilegal, obviamente - bem ao gosto da animalidade humana.
Um história, ao fim e ao cabo, recheada das ideias extravagantes que costumam ancorar muitos filmes (bastantes de segunda categoria) de Hollywood desde os anos 1980 - embora com diferentes matizes ao longo dos anos.
Tal trama torna a leitura veloz mas nem tanto voraz. Há alguma indiferença que acelera o leitor em direcção ao final do livro.
Apesar da tentativa de colar esta história a um cenário reconhecível, a sua implausabilidade e vulgaridade temática não permitem mais do que um reconhecimento de que o autor estrutura bem a história e continua a escrever bem - sobretudo diálogo com verve, perto de constituírem tiradas clássicas.
Mesmo tendo sido feita a integração de cenários da capital portuguesa, a história não consegue transmitir a sensação de ser nacional. Parece uma história genérica que poderia ser colocada em qualquer ponto do mundo sem nunca transmitir a sensação de lhes pertencer - ou de pertencer a outro sítio que não um cenário falso desenhado para um filme.
Parte da culpa está, também, na forma como Pedro Garcia Rosado não consegue dar vida à Lisboa do livro.
No primeiro tomo, Caldas da Raínha surgia como um local que acolhia Gabriel Ponte mas que não era bem definido. Ao deslocar o ex-inspector até Lisboa, Pedro Garcia Rosado tenta torná-la numa personagem mas acaba por não conseguir senão enumerar alguma toponímia sem conseguir definir uma verdadeira geografia - e uma geografia dramática!
O próprio comportamento da personagem central está em desacordo com o que fora em Morte com Vista para o Mar.
Gabriel Ponte é agora demasiado impetuoso e dado a um certo papel de herói de acção que difere da racionalidade e capacidade conciliatória que constituíam as suas primeiras forças.
Depois de no primeiro livro o autor ter chamado ao trabalho o retirado inspector usando-o como consultor externo, agora fá-lo colocando-o a investigar por conta própria a morte de um amigo.
Não deixa de ser uma abordagem aceitável, mas sugere menos uma evolução daquilo que Gabriel enfrenta do que uma procura de situações o mais agarradas a um pretenso realismo - que, como se vê, é impossível de manter neste livro.
Morte na Arena é o livro mais excitante - talvez até se deva dizer "bombástico" - da saga de Gabriel Ponte mas é, também, o menos interessante.
Se facilmente conquistará leitores, também deixa de lado o interesse que o primeiro livro viera criar a propósito de um detective português falível mas pleno de potencial.
A versão de "durão" aqui apresentada parece pertencer a um outro personagem e é difícil conciliar este livro com o seu predecessor.


Morte na Arena (Pedro Garcia Rosado)
Topseller
1ª edição - Agosto de 2013
352 páginas

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A crença em Gabriel Ponte

Depois de uma única e isolada leitura de entre a obra de Pedro Garcia Rosado, dediquei-me à sua mais recente criação com afinco.
Eis-me perante o ex-inspector Gabriel Ponte, promissora personagem que alia as excelentes capacidades de investigação a um passado maculado, dicotomia própria de uma figura de noir.
A grande dúvida sobre o seu carácter é a causa do seu afastamento da Polícia Judiciária e aquilo que o distingue do mero polícia reformado.
E embora não seja uma mulher fatal a vir bater à sua porta e a requisitar os seus serviços, o triângulo amoroso irresolvido entre a sua ex-mulher e a sua ex-amante não deixam de vincar ainda mais a linhagem de Ponte entre alguns dos que se tornaram do mais detectives privados da literatura.
Com o interesse adicional da sua ex-mulher ser a inspectora responsável pelo caso e a sua ex-amante ser uma jornalista atrás do mesmo tema.
Se Portugal não possui o atractivo dos cenários Nova Iorquinos para que o autor se aproprie do noir, a opção por este retrato do "Portugalzinho", uma aldeia de dez milhões de habitantes, é a segunda melhor opção.
Como este país é pequeno! E, por isso, o círculo de personagens não tem como não se conhecer e como não se relacionar - com maior ou menor desagrado.
Além de estarem a braços com um assassinato que só pode ter um de dois motivos: dinheiro ou sexo. Ou, em preferindo a portugalidade, por ganância ou dor de corno.
Um toque de ridículo ao serviço de uma inteligente manobra de dificuldade investigativa nascida tão somente do pensamento redutor dos vários departamentos da polícia, com o crime económico para um lado e os Homicídios para o outro, nenhum conseguindo "pensar fora da caixa" e relacionar hipóteses diversas.
O encontro com a tradição policial num cenário nosso, do eterno e falso país de brandos costumes - recordo o livro de Pedro Almeida Vieira -, dá uma sensação de satisfação que é mais do que a mera alegria bacoca de ver Portugal assim representado.
É uma satisfação porque faltou quem regularmente descobrisse o país como um conjunto de possibilidade para um cenário de literatura criminal.
Este primeiro tomo, apesar de ser um esforço literário descomprometido e descomplexado, merece que se reconheça que é escrito de forma muito cuidada - capaz de aliar a eficácia necessária à continuada qualidade - e que acaba por atingir níveis críticos mais profundos do que se suspeitaria.
A única falha grave do que é, de resto, uma estrutura muito inteligente vem da manipulação das revelações acerca daquilo que constitui o erro no passado de Grabriel Ponte.
Ou havia uma espécie de prólogo longo onde essa história fosse revelada, algo bem ao estilo dos contemporâneos thrillers, ou a informação era mantida na obscuridade para criar a dúvida crescente no leitor.
A revelação tal como acontece retira-lhe força e não é capaz de criar qualquer suspense. O personagem passa por ela semi-incólume aos olhos do leitor, o que não é aceitável nem literaria nem moralmente.
O livro resulta como um todo amenizando essa falha que por momentos o desvirtua e, no final, Gabriel Ponte consegue persuadir o leitor a continuar com ele por outras desventuras.


Morte com Vista para o Mar (Pedro Garcia Rosado)
Topseller
1ª edição - Fevereiro de 2013
320 páginas

sábado, 27 de setembro de 2014

Partir com Jack Reacher

Iniciando um livro de Lee Child é necessário pouco tempo para perceber porque há tantos fãs de Jack Reacher.
Trata-se de um personagem à margem da sociedade, que usufrui da liberdade com que a maioria dos leitores apenas sonha, mas capaz de com ela se relacionar com grande facilidade, usando de enorme educação e colocando as suas habilidades à disposição alheia.
Destaca-se de todos os outros pela sua figura física sem se sentir incomodado por isso e rege-se por um código moral que determina para si mesmo mas que o torna sempre no "herói" da situação em causa.
Embora possa parecer um The A-Team de um homem só - e não sendo apenas um livro que permite tirar conclusões precisas - é um viandante que reforça um sentido de liberdade individual e desapego material sem desprezar os outros seres humanos - pelo menos os que não o merecem.
Felizmente que ele é mais do que um combatente com coração. Às suas capacidades de combate e de sobrevivência, capazes de rivalizar com as de qualquer protagonista de filmes de acção, alia-se uma inteligência dedutiva que lhe vem dos tempos de detective ao serviço do Exército.
Poderão parecer demasiadas capacidades agregadas a um único personagem, como se de um super-homem se tratasse, mas há uma coerência na personagem que a torna credível no conjunto de todas estas quallidades.
Afinal, não é um personagem infalível mesmo se tem recursos suficientes para contrariar a maioria das ameaças que enfrente. E apesar da sua opção pela solidão não deixa de se sentir tocado por gestos de simpatia.
O desenvolvimento da personagem, mesmo numa leitura de um livro isolado, é notada como a tarefa na qual maior dedicação é investida.
Daí resulta um aspecto merecedor de destaque, que Lee Child contribuia com uma qualidade de escrita que não costuma ser chamada aos thrillers.
A abusiva descrição de acções que tende a encher páginas atrás de páginas (Jeff Abbott é o primeiro nome a vir-me à mente) é aqui substituída por uma construção cuidada que valoriza o cenário e o ambiente em que as personagens se movem, valorizando assim a envolvência da leitura ao invés de a tornar tão específica que causa um desinvestimento de imaginação por parte do leitor.
Resulta isso também deste livro ser uma construção de policial que só no seu desfecho cede lugar às cenas de thriller, dando por isso espaço às personagens e às situações que vivem em vez de as obrigar a servir como peças (semi-anónimas) da trama.
Certamente que com isso se torna apelativo de seguir as várias aventuras de Jack Reacher, fonte de prazer literário e não de meras "emoções fortes".


61 Horas (Lee Child)
Edições Asa
1ª edição - Novembro de 2012
432 páginas

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Satisfação interrompida

Este livro de Don Winslow é um relato carregado de adrenalina que o autor conseguiu traduzir na totalidade do seu trabalho.
A sua escrita está carregada da energia que salta dos personagens e das suas acções, reforçada pela estrutura estabelecida com os capítulos que são como picos extremos de um registo sísmico, indo de duas palavras (no brutal capítulo inicial) a várias páginas e nem sempre com as frases a ocuparem as páginas de margem a margem como é "norma".
Essa energia ser um sentido de humor bastante livre, nascido de um estilo de vida  descomplexado que gera uma ironia que funciona ainda melhor porque as personagens geram-na de forma inadvertida e parecem incapazes de se aperceberem dela.
Naturalmente porque as personagens são uma espécie de apanhado de contra-sensos no limite do esterótipo: um militar rendido à vida pacífica, uma mãe latina chefiando um cartel de droga, um vendedor de droga dedicando a vida ao altruísmo e uma menina rica negligenciada com amor a mais para dar.
Se considerarmos estes quatro como os personagens principais do livro podemos crer que representam os pontos cardeais de uma América superficial que se leva demasiado a sério.
O curioso é que entre adolescentes e mães de família, são personagens de um mundo de crime que se pode ver igualmente como mundo empresarial.
O tráfico de droga como comércio onde duas mentalidades são possíveis é uma ideia particularmente curiosa.
De um lado os jovens que pensam ser justa a retribuição ao mundo desfavorecido da matéria-prima que fornece e a dádiva aos seus colaboradores de uma vida no lugar da exploração pelo lucro excessivo.
Do outro a velha mentalidade para quem o lucro é tudo e as boas práticas negociais são a primeira "treta" a ser esquecida.
Traços para uma leitura de moralismo amargo acerca do mundo empresarial que se desvanece à medida que o autor se afunda nas motivações privadas dos personagens numa trama de confronto de acção criminal.
A moralidade individual dos personagens e, sobretudo, a dependência emocional do trio Chon, Ben e O, leva a que o livro se torne menos pertinente.
Cada personagem mostra possuir motivos para censura sendo, por outro lado, digna de compreensão - se não mesmo de compaixão.
Nenhuma delas é "Boa" ou "Má", tentando o autor que elas caiam na faixa intermédia de classificação. Tentando e falhando, pois haverá sempre os maus melhores e os maus piores, no final não havendo personagens dúbias mas apenas personagens mais unidimensionais classificadas a partir de um ponto de vista deslocado da norma social.
Com isto, termina-se Selvagens com um sentimento de satisfação, fruto da combinação da forma com um conjunto de ideias cheias de potencial que torna a leitura imparável.
Sem que deixe de transportar consigo uma constatação de falhanço por se ter reduzido a uma certa banalidade medida a partir dos níveis a que as ideias pareceram apontar desde o início.


Selvagens (Don Winslow)
Porto Editora
1ª edição - Setembro de 2012
294 páginas

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Geografia Americana

A narrativa acerca de Matthew King é feita pela voz dele mesmo e no Presente, obrigando o leitor a partilhar o que ele sente a cada momento com uma intensidade acrescida.
Não é um método inovador mas neste caso prima pela eficácia consistente que impede que se perca a ligação com a história deste homem.
Advogado descendente da realeza Havaiana com a mulher em coma prestes a ser "desligada da máquina" e com duas filhas das quais conhece muito pouco e com quem não sabe lidar.
Tendo-se sempre entregue ao seu trabalho, que sabe que lhe consumiu mais tempo do que o devido, encontra-se pela primeira vez na vida a braços com uma situação que é incapaz de racionalizar e que o vai levar numa viagem de múltiplas descobertas.
Descoberta de si mesmo, descoberta da verdadeira amplitude da realidade escondida pela fachada feliz do seu casamento e descoberta da fidelidade emocional associada à turbulência adolescente da sua filha mais velha.
Não que esta descoberta se afigure fácil, pois se há característica permanente em Matthew, mesmo perante a mais dolorosa adversidade, é a de total alheamento.
Matthew não muda de imediato, nem mesmo quando descobre que a mulher o traía e que foi isso que afastou a filha para um colégio interno.
Só durante a road trip que se segue, uma peregrinação de amor em busca do homem que deveria importar mais do que ele à sua esposa, é que ele começa a desabrochar como personagem multidimensional.
Que a transformação aconteça ao longo desses momentos em que ele foge do território que costuma conhecer torna-a mais credível, mesmo sendo ainda uma transformação súbita que se segue a um verdadeiro twist no desenvolvimento da história.
A viagem acrescenta momentos de um certo humor (sombrio, apesar de tudo) que alivia a carga emocional do livro.
Somado à contenção com que a autora escreve, que sustém a tristeza brotante da trama sem retirar sensibilidade às palavras que se lêem, o humor ajuda muito a que o melodrama não desabe sob o peso da sua crescente melancolia caótica.
Ainda que parte desse humor seja artificalmente gerada com a presença de um segundo adolescente - amigo e apoio da filha de Matthew - e que seja mais honesto e dilacerante quando nasce da honestidade infantil da filha mais nova de Matthew.
As jovens raparigas são mesmo duas excelentes personagens que marcam a diferença pela maneira como afectam o seu pai, protagonista masculino mais sério mesmo que não avesso a um diálogo de interrogação interior de alguma fragilidade - como se emocionalmente nunca tivesse deixado de ser adolescente, apenas desse o salto para se mostrar um homem.
Talvez por nascerem de experiências mais pessoais da autora, creio que teria sido interessante ver as duas filhas de Matthew tomarem as rédeas da narrativa, sem que isso queira dizer que ele não é uma personagem à altura da narrativa ou de cânones pessoais de memoráveis personagens (masculinas).
Só a sua relação com a herança - um território imenso prestes a ser vendido para um grande projecto imobiliário - sobre a qual ele tem a decisão final (mas cuja posse partilha com um imenso número de primos) me parece menos explorada do que deveria ser para que nos momentos finais do livro se acreditasse mais na sua atitude.
De entre os descendentes do título, ele como descendente da própria imponência do arquipélago do Havai está menos bem composto do que as suas filhas como descendentes do desfasamento entre um casal.
A importância da sua decisão para a sobrevivência do Havai e da sua identidade histórica (que ressente não ter perseguido antes) como mais do memórias nunca é tão bem definida como a mais simples significância dos terrenos como legado palpável que possa deixar às filhas.
Mesmo assim, a autora consegue ainda transmitir uma ideia do Havai como cenário dramático de força - e até força histórica - que é raro vermos por cá na ficção que se serve da região como paraíso turístico.
Com Os Descendentes fica-se com a forte promessa de uma nova voz ficcional Americana e com o nascido interesse acerca de uma geografia Americana que parecia quase não existir na boa ficção.


Os Descendentes (Kaui Hart Hemmings)
Editorial Presença
2ª edição - Janeiro de 2012
304 páginas

domingo, 21 de setembro de 2014

Para ecologistas e leitores

Com A Sexta Extinção, mais do que divulgação científica, estamos perante um livro de alerta científico que faz falta a todo o tipo de leitores (tal como faria aos não-leitores).
A leitura acerca daquilo a que estamos a condenar o nosso mundo - e a nós mesmos, obviamente - é essencial para todos aqueles que ainda possam crer que se pode mudar o rumo que se leva.
Mesmo se é mais essencial ainda para que todos aqueles que não têm nem formação científica nem (aparente) interesse pelo tema possam compreender como é fácil toda uma espécie desaparecer no tempo de uma vida humana e extrapolar essa conclusão para os seres humanos.
A sua simplicidade de explicações - que não descura a precisão científica - torna a leitura tão agradável quanto é informativa.
Acresce a isso a dedicação de cada capítulo a uma espécie distinta, tornando-os curtos e independentes, algo benéfico para gerir a leitura.
Para quem não esteja interessado em todas as espécies abordadas poderá optar por deixá-las para o final ou abandoná-los por completo que os principais fundamentos que deve obter do livro não serão prejudicados.
Para quem esteja interessado em consolidar o conhecimento dos dados e da bibliografia que acompanham os livros pode fazê-lo ao fim de cada capítulo e microgerir a sua leitura para aprofundá-la.
Nada disto é, no entanto, o essencial para que o livro seja capaz de seduzir leitores do mais variado. Isso vem de uma escrita nascida do jornalismo e que sabe oferecer uma quantidade de géneros diferentes, se assim os quisermos entender.
Elizabeth Kolbert foi investigar cada desaparecimento de espécies - pelo menos aqueles que aconteceram num período mais recente e passível de ter sido testemunhado - no local onde estes estavam a ocorrrer.
Acompanhando os cientistas que têm vindo a estudar essas espécies em específico, ela faz mais do que o registo de números e factos concretos, ela é capaz de dar um testemunho abrangente que desvenda algum do progresso do pensamento científico - tanto com avanços como com recuos - ao longo dos séculos e também algum dos seus desenvolvimentos mais recentes.
Lições de História da Ciência que são complemento essencial a tudo o resto que o livro tem para dar.
Sendo ainda do espírito do jornalismo literário que vem o género que realmente faz a diferença, com cada viagem que a autora faz acompanhando os cientistas locais a surgirem como relatos de aventuras excitantes para todos os novatos que vão à descoberta (pelo livro) tal como ela foi.
As suas descrições emocionadas da beleza das zonas de corais ou do acasalamento de uma espécie de cocolitóforo fazem lembrar os ,motivos pelos quais nos apaixonávamos pelos livros e aventuras quando éramos leitores iniciados.
Como leitor e como ser humano consciente do mundo que o rodeia só posso afirmar que este é um livro a merecer ser lido.


A Sexta Extinção (Elizabeth Kolbert)
Vogais
1ª edição - Junho de 2014
416 páginas

sábado, 20 de setembro de 2014

Que saga será esta?

Tenho uma aversão pessoal por Stephen King devido à sua visão arrogante e egocêntrica de um filme genial como The Shining apenas porque não é perfeitamente fiel ao seu próprio livro.
Não que ele não tenha direito a sentir-se insatisfeito, mas soa-me sempre como um mentecapto por continuar, por mais de três décadas, a atacar o filme sem tentar compreender que a sua existência não substitui a da sua obra ou que a liberdade de interpretação não invalida as intenções originais do autor.
Stephen King faria bem em aprender com Isaac Asimov que recebeu com capacidade de reflexão a interrogação "O que o faz crer que percebe aquilo de que trata a sua história?" ao dizer a um professor que analisava um dos seus contos que a sua intenção original nada tinha a ver com a ali explanada.
Reconheço que tal como Stephen King perante o filme de Stanley Kubrick eu mantinha o meu próprio preconceito acerca do autor que me impedia de ler o que muitos consideram um autor essencial.
Em minha defesa devo apontar que há alguns anos atrás tentei ler Cell - Chamada para a morte - saltando por cima da tagline ridícula (e intraduzível) Não é à toa que cell (telemóvel) rima com hell (inferno)... - e ao fim de pouquíssimas páginas tive de desistir de tão mal escrito que era esse livro.
Nova tentativa agora e perante os elogios a uma série antiga - crendo que os anos tenham causado alguma decadência do autor até chegar àquele outro livro dele - e a curiosidade que a sua adaptação a banda desenhada já me tinha levantado.

O primeiro volume mostrou-me o quanto poderia estar a perder, com Stephen King a criar um mundo interessantíssimo onde todas as possibilidades estão em aberto por sugestão em aberto de tudo o que ficou para trás.
Trata-se de um mundo onde a memória Histórica está de tal modo perdida que a Ciência se começa a confundir com Magia - muito embora ambas tenham dominado este mundo antes dele ter chegado a este ponto.
Sendo "este ponto" uma sugestão de mundo pós-apocalíptico retornado ao estilo do Velho Oeste e onde uma versão (decalcada mas intensa) do Uomo senza nome vagueia como último descendente dos heróis Pistoleiros que mantinham a paz.
Um mundo que existe num universo paralelo ao correntemente habitado por nós, num aumento de complexidade - que neste caso é o mesmo que dizer aumento de interesse - em que a Ficção Científica (de grande escala) se soma à Fantasia e ao Western.
Todos este géneros e as suas variações internas combinam bem porque não são ainda demasiado explorados nos seus detalhes, deixando em aberto um espaço de conjugação que proporciona alguma abertura ao autor e aos seus leitores, todos juntos cimentando este mundo literário.
Em oposição a isso, não se trata de um livro cuja estrutura inspire o sentimento de "solidez", com cada uma das suas cinco partes a parecerem independentes - mas agregadas de forma muito funcional e perfeitamente legível - e com o objectivo de dar a conhecer o Passado, tanto do mundo como do seu protagonista.
Encarados como mini-histórias onde as personagens coadjuvantes servem para descobrir mais acerca do protagonista e depois desaparecem, os capítulos são melhores do que a globalidade da história.
Ainda assim sugerem um sentido de continuidade da aventura, com a reflexão a substituir a acção, que torna a leitura num prazer acrescido capaz de evocar o espírito d' O Senhor dos Anéis (a criação de uma linguagem própria sublinha isso mesmo) e a confortável revelação de que os livros de aventura podem ser plácidos e reflexivos sem deixarem de ser excitantes.
A combinação de promessas do que possa vir a caminho e os eventos já ocorridos tornam o livro arrebatador e uma entrada perfeita numa série que virá a ser uma longa leitura.

A Escolha dos Três quebra com o sentimento de engajamento que o primeiro livro criou.
Sabendo a dificuldade que há na "segunda obra", em qualquer tipo de Arte, era com acrescida boa vontade que passava ao segundo tomo, só que este teve o condão de me colocar de pé atrás logo no primeiro momento com um capítulo que serve quase exclusivamente para colocar o Pistoleiro numa situação aflitiva sem apresentar devidamente as criaturas que lhe causam a perda de dois dedos.
A funcionalidade dessa parte do texto é por demais conveniente e apesar de ficcionalmente o segundo livro se iniciar apenas sete horas após o término do segundo, denota facilmente o passar dos anos e o aumentar das pretensões de Stephen King.
A leitura do livro comprovará que a duplicação do número de páginas sacrificou a eficácia do autor que proporcionava ao primeiro livro uma beleza frásica que deixou de se sentir neste segundo volume.
A dimnuição de eficácia literária acontece na proporção inversa do aumento das intenções do livro, que extravasam para a realidade social e que tentam ser avaliações críticas cujo âmbito parece fugir ao universo criado.
A descoberta dos seus companheiro de viagem implica que Roland terá de atravessar três portas que vão surgindo ao longo da costa que percorre e que o levam para o nosso mundo em momentos de transformação na década de 1960, 1970 e 1980.
King trata de abordar temas fortes, chamando-os em pleno conceito abstracto com "letra maiúscula": Racismo, Psicopatia(s), Adição (ao Jogo)...
Estes momentos para lá das portas são histórias dentro da história e se funcionam por si mesmos, funcionam menos bem integrados no cenário global do livro.
As novas personagens que daí resultam estão cheias de potencial, pelo que não deixa de ser importante conhecer as sua origens.
Mas só o são no universo em aberto que veio do primeiro livro, não se comparando sequer ao que são no universo fechado das suas próprias origens.
Quando o insólito grupo de personagens está junto no mundo original do livro acontecem momentos muito interessantes, confrontos de resolução complexa e evolução da relação do trio que constrói um grupo e o lança para o prolongamento da aventura arrastando consigo o leitor.
Só que King insistiu em dar uma importância excessiva aos momentos que acontecem no mundo que reconhecemos como nosso, tentando completar um "círculo perfeito" através deles sem que estes pareçam ter o fôlego para tal. O resultado é o de duas histórias distintas disputando a preponderância na obra.
O autor parece deixar de lado a escrita aberta a infinitas possibilidades para começar a especificar este universo mantendo-se vago para que os leitores sejam obrigados a retornar para os próximos livros.
Sai-se deste tomo com a incerteza sobre para onde caminha esta saga, com a desconfiança de que a importância deste segundo livro - e, talvez, a sua qualidade - só possa ser devidamente compreendida através dos próximos livros.
Mais do que a quebra com as emoções positivas vindas do primeiro livro, é esta falta de consolidação que faz vacilar perante aquilo em que vai resultar este esforço de Stephen King.


O Pistoleiro (Stephen King)
Bertrand Editora
1ª edição - Junho de 2013
216 páginas


A Escolha dos Três (Stephen King)
Bertrand Editora
1ª edição - Abril de 2014
424 páginas