sábado, 28 de dezembro de 2013

O todo é menor que a soma das partes

São duas as ideias de livro que Markus Zusak tenta fazer funcionar em conjunto, mas que se enfraquecem uma à outra.
De um lado está a possibilidade de os livros serem a salvação do espírito durante os tempos mais terríveis da História que colocam em causa o conceito de Humanidade.
Do outro está a Morte como funcionária de recolha de corpos com visão priveligiada para as vidas dos vivos.
A primeira é aquela ideia que é mais sólida, preenchida de pequenos episódios que reforçam o corpo da ideia no romance. A utilização conjunta da outra ideia prejudica-a, enfraquecendo a atenção isolada que ela merecia ter.
Essa outra ideia surge como um truque de realismo mágico para chamar atenção para o livro com uma "dose extra" de extravagância criativa.
O uso da Ceifadora como uma funcionária ora contente com a função, ora sobrecarregada pela Guerra - e atrocidades cometidas para além dela - e que possa revelar um lado humano com algo como um sentimentalismo invejoso por algumas vidas que preferia ter no lugar da sua surge como uma ideia cheia de potencial. A ter de ser explorado como mote único, tornando a Morte numa personagem e não numa narradora conveniente para ser omnisciente e opinativa.
A sensação definitiva acerca do papel da narração por parte de uma Morte sentimentalmente amenizada é a de vir tornar num conceito inócuo as mortes de milhões de pessoas às mãos dos Nazis, permitindo uma leitura suave para um público jovem.
Se há algo que a ideia principal do livro não necessita é de ser transformada numa história de sensibilidade juvenil.
A força da história d'a rapariga que roubava livros é o apelo que tem para todos os leitores, não importando quão longa a relação afectiva que criaram com os livros e a leitura.
A relação de Liesel com os livros não poderia ser iniciada de maneira mais estranha - com um manual para coveiros - nem ter uma continuação menos ortodoxa - um livro ilustrado, de meras treze páginas, pintado por cima das páginas de outro - de tal maneira que os roubos que faz são o elemento mais normal da sua relação.
Rouba o primeiro livro a quem lhe enterra o irmão morto por um comboio. Rouba o segundo a uma fogueira desatendida. Mesmo aqueles que lhe são dados foram roubados à dureza humana ou à austeridade da vida.
Bastaria isso para falar de forma intensa sobre as vidas no tempo da maior barbárie humana.
Afinal, os livros foram os primeiros inimigos que o Partido Nazi tentou purificar, queimando os que não se enquadravam com a sua visão do mundo.
Os livros não são uma metáfora para o que aconteceria aos judeus, são um seu paralelo menos cruel mas não menos dramático.
Que os livros surjam como objecto de salvação de vidas é uma combinação natural que deveria estar mais explorada, ao invés da história se desmultiplicar - muito por culpa da escolha da narradora - em personagens e eventos que favorecem o charme do livro mas prejudicam a fortaleza narrativa.
Os episódios relacionados com os livros e a leitura demonstram bem isso por parecerem demasiado raros num livro de mais de quatrocentas páginas.
A salvação de jornais velhos demonstra que as palavras nunca perdem a força para um espírito a necessitar de consolo e para um corpo a necessitar de saber do mundo depois de tanto tempo fechado numa cave.
A utilização de um exemplar de Mein Kampf para um judeu se esconder à vista de todos fala do poder transformador de um livro e de como este escuda do mundo quem o segura.
A criação de um novo livro - sobre amizade - por cima das páginas desse mesmo manifesto faz prova de que a imaginação ainda é capaz de recorrer à criação para vencer qualquer adversidade.
Esta é a ideia que sobressai do livro ainda que esteja enfraquecida pela adição mal ponderada da restante.


A Rapariga que Roubava Livros (Markus Zusak)
Editorial Presença
1ª edição - Fevereiro de 2008
468 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário