terça-feira, 31 de maio de 2016

Falta de identidade

Este livro pode ser representado pela sua mais jovem personagem, uma menina cuja identidade está por decifrar desde que a sua gémea morreu.
Como ela, o livro não sabe se o seu género é horror fantasmagórico ou thriller psicológico.
Como a identidade da menina se tornará clara na grande revelação final, também aí o livro mostra ser apenas uma drama familiar num embrulho mais atractivo.
Mesmo para apreciar o embrulho é necessário aceitar que duas gémeas de seis anos têm personalidades tão idênticas que a sua mãe não as distingue.
Ou que a solução para uma tragédia familiar combinada com uma crise económica é a mudança para uma mansão que custou cinquenta mil libras mas em que a família pode trabalhar para que o seu valor ascenda a dois milhões (nem vale a pena pensar quão imprópria estará a mansão será para lá se viver...).
Uma mansão numa ilha escocesa cujo ambiente S. K. Tremayne (um pseudónimo ambíguo para um autor claramente masculino) se esforça por fazer sobressair mas que permanece insípido.
Local remoto e que depressa fica isolado da localidade mais próxima a que se acede por barco ou, quando a maré está baixa, por um caminho pedonal muito perigoso.
A segurança da criança traumatizada pela morte da irmã não é uma real preocupação dos seus pais que, lá instalados, tomam decisões ainda menos razoáveis para a saúde mental da filha.
Entre elas não dialogarem um com o outro acerca do que testemunham no comportamento da filha quando estão a sós com ela, tentando ao invés manipular a realidade para agradar ao cônjuge.
Só mesmo a contínua irracionalidade dos personagens para haver trama que leve as páginas por diante e permitir algum grau de incerteza - que o autor deveria ter conseguido com a escolha do narrador.
A escolha do ponto de vista de Sarah - a mãe das gémeas - durante 90% do livro deve dar a sensação de que ela progride de um estado de fiabilidade para um de tormento, seja por estar assombrada ou louca.
O problema é que, como se descobrirá, Sarah nunca foi um personagem confiável, pelo que ter a sua como (quase) exclusiva versão dos acontecimentos é um erro.
A introdução do ponto de vista do marido é demasiado esparsa para ter significado. Aliás, só existe para dar conta de episódios que Sarah não pode testemunhar.
Teria de ser o confronto entre os dois estados de entendimento dos eventos a criar dúvida - e interesse - no leitor sobre qual dos dois está certo e qual das identidades corresponde à rapariga que sobreviveu.
Com isso a revelação final poderia não ser mais do que a realidade tornada evidente para quem a vinha pensado de outra forma, uma surpresa do que já estava diante dos olhos, apenas retorcido por interpretações individuais.
O autor não tem capacidade para isso, pelo que para a reviravolta se torna dependente da perspectiva da traumatizada Sarah e da ferramenta preferida dos que preferem sonegar informação a usá-la como matéria ficcional: uma amnésia parcial e selectiva.
O final do livro é uma torrente de informação que dá explicações simplistas para o que veio antes e desvia o foco de atenção para temas que nem estavam no livro - com razão!
A pouca valia do livro está anulada pelo seu péssimo final que, além da informação, atira à cara do leitor o desperdício que foi investir nesta leitura.
Algo que a indefinição da identidade da história já fazia desconfiar.


As Gémeas do Gelo (S. K. Tremayne)
Topseller
1ª edição - Setembro de 2015
320 páginas

domingo, 29 de maio de 2016

Incapacidade de criar

O cenário é o de uma cabana onde os personagens se isolaram durante um fim-de-semana. Consumo de álcool e cocaína, uma mensagem sobre assassinato durante uma sessão espírita, pegadas no exterior da casa, a linha telefónica cortada e uma tensão provocada por um personagem obsessivo.
Nesse instante, já para o meio do livro, as possibilidades são múltiplas. Horror ou thriller, provocados por um personagem externo que então aparece. Ou, ainda melhor, um simples crime a ser desvendado dentro dos limites daquele grupo no estilo de Agatha Christie.
O leitor será ingénuo por imaginar tanto assim. Aquilo que se segue é um desses thrillers psicológicos sobre uma mulher que se revela uma psicopata que continuarão a ser publicados enquanto haja filão para esgotar.
Afinal esta é apenas a história de como uma mulher tenta, da forma mais desajustada e violenta possível, salvar a face perante o fim eminente do seu noivado: matar o noivo e culpar outra pessoa.
Outra pessoa que é Nora, que vive assombrada há dez anos pelo fim da relação amorosa dos seus dezasseis anos com nenhum outro que o noivo de Clare.
Conclui-se que as mulheres só podem ser cabras psicóticas ou crianças assustadas em função do homem pelo qual definem a sua vida - no caso o mesmo que a sua vida amorosa.
A banalidade da segunda metade do livro, que ainda para mais é estruturada de forma deficiente, obriga a negar o benefício da dúvida que se deu à preparação do desfecho.
Só o instante em que todas as possibilidades eram possíveis afastava o terrível espectro de previsibilidade instalado desde o momento em que Nora aceita ir a uma despedida de solteira para uma (melhor) amiga com quem não fala há uma década e que nem sabia que se ia casar...
Essa previsibilidade não é uma manipulação para desviar a atenção do leitor do verdadeiro desfecho. É a única ideia que a autora conseguiu ter.
Tudo é mais pobre por ser Nora a personagem que nos serve de ponto de vista à história, uma escritora de policiais que não tem o raciocínio analítico para suspeitar do mesmo que o leitor.
Temos de a aturar deitada numa cama de hospital a recordar os eventos do fim-de-semana com medo e dificuldade. Nora não sabe se é a culpada pois sofre de uma conveniente (para que a trama tenha alguma duração) amnésia selectiva.
Pior são as suas recordações de há dez anos, que a tornam numa mulher ridícula no presente enquanto a mostram como uma adolescente que ora é totalmente insensível perante um aborto como exagera por completo perante uma rejeição e nunca mais fala aos seus colegas.
A história cabe nestes meros parágrafos mas isso não faz um livro capaz de vender. Para isso é preciso encher as páginas. Dos piores lugares-comuns, claro!
Como a cena final em que a protagonista, enfraquecida e desprevenida, foge do hospital para se ir colocar, sem apoio, numa situação de perigo pessoal de forma a provar que é inocente.
Ou, pior, como a caçadeira por cima da lareira - descarregada garante a anfitriã que os leva a ter uma lição numa carreira de tiro - cuja falta de subtileza é sobrecarregada porque a autora tem um dramaturgo a afirmar que ela o faz pensar em Tchekhov.
Como nota positiva diga-se que Ruth Ware tem um mérito, o de saber transmitir a ambiência envolvente e ameaçadora que os personagens vivem naqueles bosques.
O problema é que contra ele pesa a incapacidade para criar: personagens que não sejam representações de comportamentos extremos, uma estrutura que nos deixe em suspenso em vez de nos sonegar informação ou uma narrativa desafiante que não seja colagem de clichés.


Private: Los Angeles (Ruth Ware)
Clube do Autor
1ª edição - Abril de 2016
328 páginas

sábado, 28 de maio de 2016

O fardo da imaginação

Yann Martel continua a ser um homem cheio de imaginação. O problema, como com A Vida de Pi, é que lhe falta a inspiração e a transpiração para moldar as suas ideias na forma de boa ficção.
De tal maneira ele tem imaginação que desta vez ele concebe três histórias que em 1904, 1938 e 1980 (e pouco) vão dar a Tuizelo, uma aldeia em Trás-os-Montes.
Essa região é que constituiu as tais Altas Montanhas de Portugal, sendo que lá para meio do livro é dito que essa é uma denominação que lhe deram, se para afastar interessados ou para a publicitar de forma falaciosa, não se sabe.
Não importa, esse é mais um elemento da imaginação do autor, que ele usa como forma de elevar ao "maravilhoso" a base realista que cria com a qualidade da sua pesquisa.
Pelo menos crê-se que assim seja, pois não há vontade de verificar a realidade de conduzir um Renault no início do século passado ou a exactidão do percurso que Tomás faz por Lisboa.
O que deve interessar realmente é que em 1904 Tomás que caminha às arrecuas vai atravessar Portugal ao volante de um carro, máquina que desconhece por completo. Que em 1938 Eusébio ouve uma descrição de como Agatha Christie é a versão moderna dos Evangelistas antes de realizar uma autópsia cheia de impossibilidades. Que pelos anos 1980 Peter vai, por impulso, viver com um chimpanzé com quem avista o último dos rinocerontes-ibéricos.
Ainda assim estes são eventos superficiais, pois não podemos esquecer que Martel está à procura de significados profundos para a Fé e o Amor.
O que deve interessar ainda mais é que pelos anos de 1980 o chimpanzé de Peter se assume como mais um elemento da vida da aldeia e é o único que consegue encontrar o mítico rinoceronte. Que em 1938 Eusébio descobre que o corpo humano, como a história de uma vida, é composto por muito - mas muito! - mais do que orgãos. Que em 1904 Tomás persegue uma extrapolação miraculosa que fez a partir do diário de um padre e da sua referência a um crucifixo que trouxe de África.
Esta trindade de homens que perderam as esposas está numa espécie de viagem em contínuo que os leva de "sem casa" a "em casa", reconciliando-se com Deus, que se deverá concluir ser o esquivo rinoceronte.
Tal como os macacos que vão atravessando a narrativa devem ser as verdadeiras formas dos anjos dos quais ascendemos à nossa condição, pelo que Tuizelo deve ser um qualquer Éden onde homens e macacos podem conviver pacificamente e comungarem com o divino.
Haverá quem veja nestes elementos motivo para assombro. Seriam se o autor fosse além de uma tentativa tosca de dar sentido à salganhada.
Na verdade esta conclusão é apenas uma das muitas que se podem tirar do livro pois o verdadeiro resultado é um vazio de sentido.
Martel tentará fazer crer que está a depositar a responsabilidade nas mãos do leitor, mas na verdade está a ser preguiçoso com as decisões que tinha de tomar para os seus personagens e o seu estado de permanência no universo que criou.
Tal como está a ser preguiçoso quando se permite qualquer excesso incoerente com a etiqueta de realismo mágico, a que o autor não pertence.
Pois se falamos da sua "rica" imaginação, aponte-se aquilo que ela disfarça: a pobreza da sua escrita.
Há uma suposta procura de requinte escrito que resulta em metáforas pavorosas, seja porque se tornaram ridículas ou porque perderam o seu sentido. Basta transcrever um parágrafo para demonstrar ambos os casos.
O amor é uma casa na qual a canalização nos traz novas emoções gorgolejantes todas as manhãs e os esgotos descarregam as nossas disputas e as janelas claras se abrem para deixar entrar o ar fresco da boa vontade renovada. O amor é uma casa com fundações inabaláveis e um telhado indestrutível. Ele teve uma casa assim em tempos, até que foi demolida.
Más metáforas são, ainda assim, mais desculpáveis do que a absurda abertura do livro onde inúmeros nomes de ruas de Lisboa são citados. Além de proporcionar sonoridades exóticas,  a geografia inútil só serve para maçar, mesmo aqueles que não conheçam a Língua Portuguesa.
Até mesmo nisto se vê a indecisão de Martel, pois se todo o livro é uma parábola, que evitasse as exaustivas descrições dos problemas que o Renault dá ao longo do caminho.
Yann Martel não sabia qual dos livros escrever e escreveu os três. Agregou melhor a primeira e segunda parte, deixando para a terceira (e menos má) um remate mal conseguido. O todo é, aqui, menor do que a soma das suas fracas partes.
Para um livro que durante dois terços quer fazer crer que a escrita e a sua interpretação podem refazer a ligação entre o Homem e Deus, não há pior do que falhar ele próprio em qualquer solidez literária.
A única indecisão de que Martel não sofre é aquela que o condena, pois continua a perseguir reflexões sobre a influência da religião (da crença, será mais justo) nas pessoas confrontadas com a morte.
Até mais especificamente, sobre a aceitação da ficcionalização como elemento preponderante da experiência espiritual de cada um.
Um objectivo que se projecta como ainda mais pretencioso do que é perante a falta de qualidade do trabalho que o sustenta.
Ficasse ele pela simplicidade - com as histórias trabalhadas como contos cómicos - e seria a sua imaginação digna de alguns elogios.


As Altas Montanhas de Portugal (Yann Martel)
Editorial Presença
1ª edição - Abril de 2015
320 páginas

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Um pouco de nada para todos

S. J. Watson criou um livro surpreendente que continua a merecer elogios pela sua estrutura. Este seu novo livro é uma negação do primeiro, um falhanço completo de estrutura e precisão.
O thriller que este livro deve ser aparece afogado em longos bocados de ficção que são contraditórios ao género.
A preparação dramática da trama é um longo dramalhão de arrependimentos familiares e descobertas de casos amorosos que não consegue criar um passado substancial para o personagem principal - nem vale a pena falar nos restantes... - e, portanto, tornar Julia cativante como porta de entrada no universo do livro.
Ultrapassar o ritmo lento desta parte do livro é um feito tornado mais difícil pela escrita do autor que não tem a assertividade para encaminhar a tramar nem, pelo contrário, se esforça em criar um ambiente de tensão à força da expressividade.
Lá chega o ponto de viragem, em que se espera que as circunstâncias estejam bem assentes para que os acontecimentos possam encadear-se e - finalmente! - levar o livro na direcção do que prometia.
A partir daí o autor dedica-se antes a um romance de cariz marcadamente sexual, que tenta ter um negrume a si associado mas não é mais do que um discorrer sobre o adultério do que era até ali uma mulher bem casada e que parece ter tido uma crise perante a morte da irmã.
Há traços de manipulação nesta parte da história e a procura de explorar os perigos de se entregar nas mãos de um desconhecido - sobretudo via internet - mas isso ocorre por entre um texto que parece ser já de um livro completamente distinto do que era na parte anterior, já de si muito distinta daquilo que o livro anunciara.
Quase como um truque de magia mal executado, o autor parece ter achado que o melhor seria adormecer o leitor para depois fazer surgir a reviravolta.
Esta é demasiado complexa para disfarçar a composição simplista que lhe deu origem, o que curiosamente vem negar a necessidade do romance erótico no miolo da trama.
Na parte final a manipulação via internet torna-se o grande tópico do livro, desmultiplicando-se de tal forma que fica demonstrado que havia maneiras mais simples do vilão conseguir os seus propósitos sem recorrer a expedientes cujas morosidade e dificuldade de execução fariam corar alguns génios do crime.
Muito embora génio não seja uma característica necessária no que toca a quem manipula Julia, um personagem idiótico.
A sua iniciativa de entrar nos chats em que a irmã arranjava encontros para procurar o seu assassino pode parecer uma atitude temerária embora pouco ajuizada. Ainda assim é a sua decisão mais razoável.
Todas as que se seguem são motivadas por uma profunda ignorância, das regras mínimas de segurança online, por exemplo, ou por uma confrangente irracionalidade.
Más decisões que ocorrem para fazer avançar os resquícios de uma trama. Julia está ao serviço da trama que lhe faz um desserviço a ela.
Esta característica do personagem central torna a reviravolta ainda menos aceitável e, em geral, o livro ainda menos agradável de seguir.
Julia deveria, talvez, ser perdoada pela sua composição. Apesar de tudo, ela não é mais do que a linha mestra com que S. J. Watson tenta ligar três (pedaços de) livros em três géneros com mercado.
O autor pode ter tentado garantir vendas transversais do seu segundo trabalho ou, simplesmente, ter dado um pouco de tudo a cada leitor.
O que ele conseguiu, pelo contrário, foi fazer deste Segunda Vida um vazio.


Segunda Vida (S. J. Watson)
Jacarandá
1ª edição - Novembro de 2015
408 páginas