terça-feira, 1 de setembro de 2015

Bem carregado

Nos anos 1950 em Dublin um patologista leva uma vida carregada de desesperança. Não pelo número de cadáveres que vê passar pelo seu departamento mas pelos constrangimentos sociais que voltaram a dominar a cidade.
Para o seu caso particular conta que se tenha ligado a uma das famílias que continua a dominar a estrutura social e a impôr a sua vontade. Até a ele que teve de se casar com a irmã que menos amava.
Quando o seu concunhado tenta fazer passar uma certidão de óbito com uma causa falsa, o protagonista Quirke, vence a sua inacção.
O sentido do seu nome para o que ele vai representar na ordem estabelecida é evidente. Talvez ele tenha encontrado o seu ponto limite para as cedências que faz à família. Ou apenas tenha sentido a sua exigência profissional (e moral) colocada em causa.
Seja que razão for ele inicia a investigação acerca da morte de Christine que se adensa dentro do clã que nunca o aceitou devidamente.
Na Irlanda nenhuma família existe isolada e aquilo em que ele remexe envolve uma ligação maior entre múltiplas famílias poderosas e entre Dublin e Boston.
O que ele vai revelando é uma rede que se move para lá da Lei assente nas boas intenções do Catolicismo.
Homens influentes no seio de uma sociedade secreta que tentam moldar um futuro pleno para a sua herança nos Estados Unidos da América: tráfico de crianças para garantir os homens e mulheres de fé do futuro, certamente através duma lavagem cerebral que é apenas sugerida.
Quirke, como vários detectives do noir americano dessa e da década anterior, envolve-se em algo que é demasiado para um homem sozinho - e para as suas capacidades como detective!
A cobrança é física, ficando ele praticamente sem uso de uma perna. Mas a desistência psicológica nunca é equacinada.
Aqui o policial é temperado com o melodrama, que reaproxima as personagens da trama num novelo emocional que se dirige de novo à família de Quirke.
Quirke move-se também para salvaguardar a vida da sobrinha em relação a quem há um segredo e que, como ele, também se rebela perante a família com a paixão por um homem que não se adequa a ela.
Um segredo poderoso que é, de certa forma, o reflexo pessoal do caso que ele investigava e que parece indicar que Quirke estava desde o início consciente que precisava de se colocar na pista da resolução do seu próprio papel dentro da família, até para o contrariar em definitivo.
Só que esse segredo obriga a toda uma consequência de pequenas revelações que marcam os personagens, sem excepção, como seres falhados que tiverem de se encobrir com a força da tradição familiar.
O livro é inclemente, dilacerando os personagens - e o leitor com elas - à medida que as encaminha de forma destrutiva para a resolução que envolve outra Christine, a filha da mulher que o concunhado queria fazer crer ter morrido de causas negligenciáveis.
Não se pode negar que o apelido Black foi escolhido para denunciar a atmosfera do livro, num trabalho que é de construção meticulosa do enredo mas que não descuida a qualidade da arte que deve estar inerente à montagem da cadência das palavras nas frases e das frases nos parágrafos.
Benjamin Black, ou melhor John Banville, escreve com a mestria de quem não se excede nem sequer numa palavra mas sabe preencher cada frase com a sugestão de atmosfera que insufla o instante da frase e se vai acumulando até carregar de tal forma cada cena que esta emana em torno do leitor e torna o livro inesquecível.


O Segredo de Christine (Benjamin Black)
Edições Asa
1ª edição - Março de 2010
320 páginas

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