domingo, 21 de junho de 2015

Perdido... de riso

Foi preciso um miserável filme para que se começasse a conhecer a obra de Kyril Bonfiglioli. Não só por cá, mas um pouco por toda a parte.
Valeu a pena aturar o filme para que houvesse um volume editado por cá, embora seja difícil aturar mais esta careta de Johnny Depp sobretudo conhecendo as ilustrações que Luke Pearson fez para as reedições Penguin Books.
Felizmente que iniciando a leitura é rápido o efeito de esquecimento da versão apalhaçada de Charlie Mortdecai que o actor fez.
Os comentários violentos e mordaz que a personagem faz a quem é, ficaremos a saber, o seu eterno rival dão-lhe uma voz própria que como se vai percebendo à medida que as páginas se sucedem, é inigualável.
Uma voz de quem vê o mundo com a perspectiva de que todo o Mundo é um antro de imoralidade e más intenções, pelo que isso lhe permite - aliás, o incita - a ser tão ou mais indecoroso do que os restantes.
Vai daí que o seu comportamento seja tão contrário à convivência social e à simples existência dentro da lei.
Pior que isso, o seu comportamento é errático comandado pelas contradições do seu feitio: a arrogância do seu gosto pessoal a debater-se com o desdém que revela por todas as ocupações.
Ainda assim chamam-no a ter um sentido de missão, mas o papel de herói não é para ele, muito menos se isso envolver algum tipo de acção que o faça levantar da cama antes do meio dia.
Assim a sua vida se torna uma trapalhada que só não é maior ou com consequências mais nefastas porque tem a seu lado o criado e guarda-costas Jock Strapp.
A relação entre eles é uma mistura dos relacionamentos pouco saudáveis entre Bertie Wooster e Reginald Jeeves e entre Jacques Clouseau e Cato.
Muita comédia entre Charlie e Jock tem uma forma e um sentido de ritmo que faz lembrar o slapstick, mas no final é a ironia com que Mortdecai brinda o seu parceiro e que parece rebater nele como numa parede que faz a diferença.
Lá está, é toda a voz do personagem criado por Bonfiglioli que arrebata o leitor e eleva o livro. Toda a sua virulência transmite a ideia de um mundo peçonhento em que só a sua atitude irresponsável permite mergulhar e emergir com algum tipo de dignidade, apesar do custo!
As suas descrições das ressacas e das curas que se seguem são tão inventivas que dão vontade de experimentar com maior regularidade tal estado de existência.
Charlie Mortdecai passa o tempo a perder-se nas suas divagações e é isso que "faz" o livro, tendo o leitor de aceitar perder-se sistematicamente.
Kyril Bonfiglioli pegou na ideia de Raymond Chandler de que nos thrillers interessa mais o ritmo da viagem do que a precisão da narrativa e levou isso até perto do caos às mãos de uma personagem que toma conta de tudo.
Não que a história deixe de ser curiosa e com enorme potencial, mas é mais importante que ela mostre como estes meandros são perversos.
Afinal Mortdecai consegue imunidade diplomática para, enquanto trabalha como espião, continua a negociar em arte de forma ilegal. E o seu rival, o inspector Martland, é um polícia que faz uso de todos os métodos que não vêm nos livros de regras.
Não se espere um grandioso final de mistério. A recompensa da leitura acontece a cada gargalhada sonora que não se consegue conter enquanto Charlie comenta mais um qualquer tema dos que o interessam.
Daí que faça um reconhecimento especial à tradução que parece ter mantido não só a eficácia das melhores tiradas do livro, como ainda deixar para reconhecimento do leitor o espírito Britânico das mesmas.
Claro que a tradução nunca será tão boa quanto ler a verve de Bonfiglioli na sua Língua original, mas aceita-se com prazer esta alternativa.


O Excêntrico Mortdecai (Kyril Bonfiglioli)
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1ª edição - Fevereiro de 2015
216 páginas

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