quinta-feira, 4 de junho de 2015

Não importa, vai vender

Percebo as razões pelas quais A Rapariga no Comboio foi um sucesso e, provavelmente, será por cá também. É mais um (quase) thriller em que o que importa são personagens cheios de problemas profundos que os tornam reais.
Nada contra esta abordagem, por vezes resultará, por vezes não, mas tentará sempre ligar-se emocionalmente ao leitor.
O que não percebo é porque será este livro a ser um sucesso quando, imagino, muitos outros com as mesmas características devem ter sido publicados.
Para ser bem explícito, este livro como thriller é mau e como montra de personagens reais é apenas medíocre.
Começo pelos personagens, um universo limitadíssimo de três mulheres e outros tantos homens, todos eles com relações mútuas entre si.
A única boa opção que a autora fez a propósito destes personagens foi assumir em exclusivo o ponto de vista delas para a narração pois duvido que conseguisse exprimir algo semelhante a uma voz masculina.
Essa decisão permite que a autora crie alguma credibilidade para essas mulheres - ficando a sensação clara que retirou o tipo de reacção delas da sua própria experiência - o que torna a leitura fácil e, sobretudo, rápida. Vale isso ao livro a atitude de relaxamento que nos leva até ao seu final embora não sintamos que o mereça.
Pelo contrário, ao ter três mulheres diferentes a narrar o livro e parecendo estar a falar por si própria através delas, a autora expõs-se ao erro de ter as três mulheres a terem apenas uma voz.
Além da voz são as próprias mulheres que pouco se diferenciam entre si, podendo ser definidas como casos graves de quem se define "em função de". Dos seus homens ou dos seus filhos - e eventuais ausências dos mesmos.
São as três vítimas à sua maneira, sem dúvida alguma sofrendo à mão de outros, mas quase sempre por incapacidade de se valorizarem por si mesmas, ao ponto de haver uma violação consentida por uma das mulheres perante o seu marido - ele não tem qualquer momento de agressão mas ela também não diz (porque não sabe como...) que não lhe apetece.
A autora não tem capacidade para retratar personagens femininos com uma identidade própria e ainda assim estão melhor caracterizados do que os masculinos que não vão além da vilania.
A suposta complexidade dos homens deste livro vem de estarem sempre em duas fases do seu comportamento: extremamente carinhosos e atentos ou potencialmente aproveitadores e violentos.
Os homens são todos propensos à mentira, à traição ou à violência. Eles são, por isso, os únicos suspeitos do desaparecimento de Megan.
Não que a autora não tente lançar alguma dúvida para cima das duas mulheres que sobram, mas dificilmente a hesitação de Rachel - que é o principal personagem do livro e, talvez devesse ter sido a única voz usada ao longo dele - o permite.
Neste universo muito limitado de personagens torna-se muito fácil concluir bem cedo - bem, bem cedo! - quem é o culpado do desaparecimento.
Isso tinha de ser contrariado pela habilidade da escritora em colocar os seus personagens em situações de leitura duvidosa - durante ou depois do evento. Essa habilidade está ausente e daí que o thriller que isto deveria ser seja mau.
A maioria das tácticas de suspense da autora para o livro são de deflecção dos passos naturais de uma melhor abordagem de Rachel à trama.
O alcoolismo de Rachel não a deixa ter memórias precisas dos eventos da noite do desaparecimento que ela viveu muito de perto.
Daí que para ela todos os que estão ligados à história daquela noite possam ser culpados. O que, em teoria - e apenas em teoria - significa que também ela pode ser a causadora de tudo.
A forma como a autora tenta ter todas as possibilidades em aberto é mal executada, sobretudo porque depende em demasiada de momentos de dúvida de Rachel logo contrariados pela realidade dos factos descritos ou por uma percepção dos comportamentos mais lógica - a dos leitores.
A autora chega ao ponto de lançar a dúvida sobre um dos homens, evidenciá-lo diante da polícia e depois reduzir a sua importância à de um utilitário para Rachel.
Para lá disso Hawkins usa todas as ferramentas que se tornaram clichés dos thrillers cinematográficos e que entretanto importaram para a literatura e cujos exemplos são importantes para perceber os problemas da trama.
Há um personagem anónimo - um homem ruivo - que surge convenientemente para dar informações acerca de parte do que Rachel não se lembra.
A reboque do alcoolismo, as memórias de Rachel vão regressando a pouco e pouco e cada vez mais completas até lhe darem a visão total dos acontecimentos para a grande revelação final.
A narrativa da própria Megan é contada em diferido, correndo para a noite do seu desaparecimento enquanto Rachel e Anna narram a partir dessa data.
Não fosse isto e o livro assumia aquilo que tenta transvestir de thriller: um melodrama barato de mulheres tristonhas e homens duvidosos.
Até o "jogo dos pronomes" (na versão que já não se refere ao género) a autora usa, quase em desespero de causa.
A cinquenta páginas do final a autora lança um É a voz dela na expectativa que algum leitor tolo ainda tenha dúvidas sobre qual, de entre duas das mulheres, essa frase se refere.
Demonstrando que é uma péssima estratega na gestão da narrativa e das suas expectativas, logo três páginas depois a autora faz a grande revelação (que de grande nada tem) e confirma ao mesmo tempo o culpado e a quem o dela se referia tornando-o ainda mais inútil.
O que sobra depois disso é uma cena final expositiva que remata o livro de forma conveniente mas desinteressante, mesmo contendo o único momento de luta de todo o livro.
Com tudo isto nem me darei ao trabalho de reflectir sobre o facto de não haver qualquer necessidade da ideia de alguém observar (e inventar) a vida dos restantes personagens através de uma janela de comboio quando quase todos eles moraram a metros uns dos outros num dado momento da sua vida.
Apenas sigo para a conclusão desta crítica e aceito que, apesar de tudo o que de mal executado que se encontra no livro, ele continuará a ser um sucesso.


A Rapariga no Comboio (Paula Hawkins)
Topseller
1ª edição - Junho de 2015
320 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário