sexta-feira, 27 de março de 2015

A real descoberta

Não só faço a leitura da obra de Herta Müller tardiamente - mesmo em relação à descoberta que o Prémio Nobel deveria promover - como num acesso de ignorância auto-infligida a fiz numa ordem pouco recomendável para a compreensão da autora (muito embora dois livros não sejam suficientes para tal numa obra já extensa).
Ao ler primeiro Tudo o que eu tenho trago comigo, falhei em convencer-me de que fosse um livro importante de conhecer.
Não que a realidade dolorosa ali retratada não fosse essencial de ser conhecida. Apenas porque o livro teimava em não ser uno nos elementos que lhe identificava.
A dureza marcante e profunda amparada (no leitor) pelo refinar da escrita de Müller colidia com a poesia do horror - o Anjo da Fome - cuja linguagem retumba como uma dor súbita mas breve.
Essa metáfora criada para uma das mais tenebrosas realidades tenta traduzir de forma agressiva algo que é inimaginável e sentia-a a tentar roubar o protagonismo à subtileza do humor sarcástico que Herta Müller deixa logo abaixo da superfície e cujo reconhecimento traz um acréscimo de consciência - e culpa? - para o limite mais violento da humanidade.
Só chegando ao Posfácio se entende que a autora esteve a trabalhar com uma voz que é a sua e memórias que eram de Oskar Pastior. E que o fez tentando também incorporar em si mesma a voz do poeta que lhe deixara um legado que ela traduzira para muitas páginas de apontamentos.
Creio que estas duas identidades funcionam uma contra a outra, por mais (boa) vontade que Müller tenha e, até, razão histórica para as juntar.
Só que, curiosamente, esta percepção adensa a leitura possível do que é um dos melhores objectos de busca do livro, a da transformação do que é exterior em algo pessoal.
Tudo aquilo que o protagonista tem traz consigo porque ele só transporta a sua capacidade de transformar a narrativa pessoal para aquilo que faz e que vê.
Até os blocos de carvão ele reinterpreta como um objecto seu ou, mais do que isso, como parte daquilo que é.
O livro fala de uma subsistência transformadora, subsistência do espírito - pela invenção de palavras, pela reinvenção das "coisas" - que se opõe e que, com grande probabilidade, ajuda a vencer a ausência de sustança.
Trata-se de uma narrativa pessoal que está para além do intelecto. A busca de palavras e ideias alheias é desmitificado pela troca de páginas d'Assim falou Zaratustra (para servirem de moratlhas) por sal e açúcar.
Trata-se da capacidade de cada um para criar para si mesmo algo que o justifique ou o transforme e de o fazer sujeito às condições mais adversas.
Esta ideia de Tudo o que eu tenho trago comigo torna-se mais intenso ao ser reflectido pela mesma busca em Hoje preferia não me ter encontrado.
Aí a protagonista viaja num eléctrico sujeitando-se às vontades alheias. Sobretudo a aleatoriedade do comportamento do condutor que se serve a si mesmo e não aos passageiros.
Quem entra e quem sai afecta o trajecto que está prestes a definir a sua vida, assim ela consiga chegar ao interrogatório que tem com a polícia secreta romena.
Cada outro passageiro, tal como cada detalhe visto pela janela, impelem-na a rememoriar a vida que levou até aí.
O tempo dentro do eléctrico é como o instante antes da morte em que a memória de si mesmo retorna em catadupa.
A narrativa do que a protagonista fez e foi combate a narrativa que estão a escrever para o seu futuro. A memória suplanta a consciência do presente.
Fica a revelação a caricatura de uma vida que pode ser percorrida mentalmente durante a viagem breve do eléctrico, mesmo quando esta é alongada por demoras externas.
O final do livro é o momento em que a protagonista toma uma decisão e se comporta seguindo algo que é seu, seja convicção ou instinto.
Não é um final da viagem de eléctrico, é a continuação da viagem para uma mulher definir mais do que é e vai ser.
Ela resgata-se às amarras que os outros foram definindo para si e que criaram uma narrativa com pouco sentido - se algum.
Saber que esses "outros" são, na verdade, os integrantes do regime de Nicolae Ceaușescu reforça o sentido de humor cruel que já reconhecia no outro livro da autora.
Uma ironia para com a comicidade que pode ser interpretada na banalidade do quotidiano, mesmo quando esse acontece no seio do "Mal".
Também esse reconhecimento remete para uma identidade que é de Herta Müller e uma outra que com a dela habita Tudo o que eu tenho trago comigo.
Por isso Hoje preferia não me ter encontrado é um livro mais coeso, portentoso e marcante que permite compreender o poder pelo qual mereceu esta escritora o Prémio Nobel.


Tudo o que eu tenho trago comigo (Herta Müller)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Junho de 2010
296 páginas

Hoje preferia não me ter encontrado (Herta Müller)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Agosto de 2011
208 páginas

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