domingo, 25 de janeiro de 2015

Histórias vividas

O título informa-nos sem embaraço da herança que este livro tem para com o clássico de Ernest Hemingway.
O que lemos só o confirma, uma escrita directa e sem subterfúgios ao serviço da história de um velho homem que se entrega à Natureza - e à sua natureza - no final da vida quando poucas ligações humanas lhe restam.
Um homem que já só é caçador quando a Natureza o confronta e não por qualquer gosto sádico. Um homem que deixa o mundo moderno ao abandono e retorna ao chamamento da sua comunhão com o mundo natural.
Não que ele deixe de tentar preservar uma ideia de si próprio enquanto dominador da Natureza, tomando conta do jipe e tendo consigo as suas duas espingardas.
Trata-se da crença no seu próprio mito que vai esmorecendo no ritmo a que o jipe que o trouxe de volta ao mato vai enferrujando parado e sem préstimo senão o de lhe recordar o orgulho que lhe proporcionava.
Sem ser um caçador, ali entre uma população que ainda vive em comunhão com as crenças antigas, ele torna-se o sábio local.
Transmite-lhes serenidade com a sua presença e mesmo quando dele esperam que use as suas armas ele prefere dar à própria Natureza uma hipótese mais.
Transmite-lhes a Razão que domina os medos sobrenaturais daquela gente e transmite o seu conhecimento feito de histórias de pessoas que conheceu ou que lhe transmitiram ao longo da vida.
A sua presença naquela aldeia é a redescoberta de um propósito depois da morte da sua mulher e a chegada da idade adulta dos seus filhos.
Não aceitando uma reforma inactiva que espera muitos dos que se entregam ao conforto da modernidade, voltou a viver as dificuldades que um espírito mais novo busca
Fá-lo para legar àquele grupo de pessoas os seus conhecimentos, engrandecendo a história oral que um local como a aldeia no Norte de Moçambique preserva.
Há quem não precise da tecnologia que tomamos como indispensável à vida moderna, antes de uma sabedoria partilhada que possa derramar-se de uma geração mais velha para uma mais nova e assim vá ensinando a viver.
O livro de Sérgio Veiga sugere isso muito bem porque se lê e logo tem a sonoridade de um relato caloroso feito face a face.
Uma herança que ele nos transmite através de um seu avatar literário de nome Hermenegildo. Um nome que significa algo muito próximo de "sacrifício absoluto".
A personagem faz esse sacrifício físico apenas após redimir aquilo que lhe enchia a alma.
Não há como não concluir a partir disso que há gente viva dentro deste livro. Histórias que não parecem poder ter sido inventadas mas que têm obrigatoriamente de ter sido vividas.


O Velho e o Mato (Sérgio Veiga)
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1ª edição - Julho de 2014
176 páginas

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