quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Vida e Vinho

Este livro de Ana Sofia Fonseca é uma companhia e não um rival de Grande Reserva. Aqui os textos são dedicados às pessoas e não tanto aos vinhos.
São os percursos de quem criou ou de quem actualmente produz os vinhos que se contam.
Assim ficam a conhecer-se os percursos de vida que encaminharam alguém até à criação de um vinho.
Estes relatos colocam os vinhos no ponto de uma linhagem pela qual merece ser conhecidos, frutos de vontades, labores ou acasos.
Em grande medida estas histórias das pessoas ligadas ao vinho dão conta de como um país que tanto vinho produz - e uma percentagem significativa dele bom - foi evoluindo da vontade individual par ao engenho "industrial" sem nunca deixar para trás a emoção que uma garrafa deve conter.
Em cada um dos capítulos a informação é tratada com fluidez o que faz com que aleitura seja veloz mas plena de ensinamentos sobre terroirs ou castas.
Só que o que mai se aprende é sobre o queão importante é para a identidade de um vinho o suor que se lança à terra.
O mérito desta recolha de artigos está em fazer com que o próximo copo que se encha nos proporcione uma visão da complexidade das vidas que criaram aquele líquido.


Cada Garrafa Conta Uma História (Ana Sofia Fonseca)
A Esfera dos Livros
1ª edição - Novembro de 2014
200 páginas

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Surpreendido

Fiquei supreendido que este livro funcionasse tão bem a partir de uma estrutura temporal dividida entre o período do rapto da protagonista que corre para se encontrar com a actualidade em que tentam que ela recupere a memória para que o caso se possa resolver.
Uma estrutura que pareceu, por alguns capítulos, propícia a deixar a trama desunir-se como um todo.
Mary Kubica dominou-a de forma exemplar levando a que o ritmo da informação do que se passara antes esclarecesse o que líamos sobre o presente da protagonista sem fazer revelações acidentais.
Levando a que o que pareciam ser dois géneros muito diferentes se fossem transformando num único contínuo narrativo.
O melodrama familiar e romântico a ser escrito como um thriller, género que melhor aproveita e acentua as tonalidades variantes do carácter dos vários personagens.
Contada na sua ordem convencional, esta era uma história de paixão, vingança e culpa. Poderia ter sido um estudo sobre Mia Dennett mas o núcleo de acção - a duração do rapto - teria de ser mais efectivo e não poderia ser explorado de forma demorada como aqui.
Nesta forma temos a oportunidade de admirar o próprio labor da autora e como ela sustenta o efeito principal do livro numa dúvida constante sobre os méritos e culpa de uma personagem central e, por acréscimo, das personagens que com ela convivem mais directamente.
Um efeito principal que não nega os restantes, de engajamento emocional ou choque moral, perante as causas das acções de cada personagem e as consequências com que terão de viver.
Embora a autora tenha encaminhado a história para uma resolução benévola para a sua protagonista - pelo menos em comparação com que o livro a ameaçava até esse ponto - compensa-o com uma revelação que volta a não deixar ninguém incólume naquele universo.
Apesar desta revelação ser fácil de adivinhar dentro de um unvierso ficcional tão estreito no que ao número de personagens diz respeito, tal não pareceu culpa da escritora que mesmo assim fará melhor com mais prática, antes fruto de uma experiência abundante com este género de narrativa, em diversos meios que não apenas o literário.
Mary Kubica conseguiu usar todos os capítulos e os saltos temporais entre eles em favor do resultado capaz de lançar a dúvida sobre os limites a que as pessoas podem ir, para melhor ou pior do que delas se espera.
Manteve o leitor interrogando não só qual era a verdade da história mas qual era a exposição de carácter que ela queria produzir,
Fiquei surpreendido que este livro me mantivesse tão engajado percorrendo uma linha ténue entre o thriller e o romance, entre o sucesso expressivo e o falhanço total.


Não Digas Nada (Mary Kubica)
Topseller
1ª edição - Agosto de 2014
336 páginas

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Passar para a ficção

Este é um livro que não proporciona a oportunidade de o reduzir a um género, o que torna mais satisfatório por utilizar um leque inesperado de ferramentas.
Começando pela forma onde, ao invés de uma narrativa una a autora cria um livro dentro de um livro.
Os Três é, em quase toda a sua extensão, o livro Quinta-Feira Negra - Da Queda à Conspiração da jornalista Elspeth Martins que acabará como personagem do livro de Sarh Lotz.
Este livro de investigação jornalística vai reconstituindo os eventos através de registos em vários formatos, algumas entrevistas e uma pequena dose de especulação a partir da tal Conspiração que o título refere.
Eventos que, pelo distanciamento temporal, não se limitam ao imediato após os acidentes simultâneos, vão bem longe na captação das repercussões que eles tiveram.
Esta investigação não pode superar as naturais impossibilidades associadas a esse tipo de trabalho ou à própria consciência humana.
Não havendo um narrador omnisciente o suspense é mantido pelos muitos espaços por preencher na narrativa que existem perante o leitor tal como perante o universo em que a história se passa.
O envolvimento do leitor com a história aumenta porque lhe é dado o melhor acesso possível e porque apaga as fronteiras entre o leitor e a existência desta.
Este esquema narrativo só é interrompido no início e no final d'Os Três, com dois momentos que balizam o livro dentro do livro e que surgem pela voz de um narrador omnisciente.
O primeiro momento narra como se deu o evento que o livro explora e poderia existir como uma tentativa de especulação - ou reconstituição - acerca da queda do avião no início de Quinta-Feira Negra - Da Queda à Conspiração.
O segundo momento vem dar uma conclusão mais informada ao livro e deveria - ou, pelo menos, poderia - nem existir para deixar a dúvida ou certeza final a cargo do leitor.
Não chegam a enfranquecer a leitura do livro e no propósito da história não deixam de ter utilidade, mas quebram a dinâmica que rege a lógica do livro.
Dinâmica que pelo seu carácter investigativo tem muito de thriller realista, como tem de história de horror ou evidência dos males modernos.
A história muito interessante por si só cresce com a chamada de atenção crítica para as muitas formas de fanatismo que colocam em causa as relações humanas e que brotam de forma súbita perante um evento de explicação difícil.
Foi inteligente a autora ter distribuído as quedas de aviões pelos vários continentes pois permitiu-lhe falar do fanatismo religioso dos Estados Unidos da América, do fantismo mediático do Reino Unido e do fanatismo pelo interface tecnológico do Japão.
Cada um desses pontos sendo o mais forte - ou mais imediato - exemplo de quão forte se torna o isolamento causado por cada tipo de fanatismo sem que a esse espaço geográfico fique circunscrito.
Estes pilares reconhecíveis que Sarah Lotz coloca na sua história fantasiosa tornam ainda mais intenso o nosso envolvimento com o livro além de facilitarem a quebra da barreira entre o a realidade e a ficção.


Os Três (Sarah Lotz)
Saída de Emergência
1ª edição - Outubro de 2014
432 páginas

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Mais (mas melhor) do mesmo

James Patterson é cada vez mais um nome de marca que dá garantias de venda mesmo de livros que só parcialmente terão sido escritos por ele.
É de crer que isso se fique a dever a um excesso de ideias que ele não tem tempo/vagar/disciplina (riscar o que cada um considere menos exacto) de concretizar por si só.
Em Invisível temos novamente uma ideia cheia de potencial: um serial killer cujo método de actuação de escolha é a simulação de incêndios acidentais para enconbrir pistas, perseguido por uma analista do FBI cujo discernimento pode estar comprometido quando o seu interesse nasceu da morte da sua própria irmão.
Partindo do ponto em que a analista ainda tem de provar que há um caso a investigar, o livro usa bem o jogo de egos em que assenta este género de perseguição.
Um ego crescente - e em risco de estoirar - na sua habilidade para iludir os perseguidores e um ego a lutar por se manter intacto contra o acumular de derrotas.
O desenvolvimento das personalidades das figuras nos dois campos deste confronto aproveita o espaço de dúvida inerente ao verdadeiro conhecimento que há de parte a parte com a criação de um conjunto de mensagens ditadas pelo serial killer que trazem informação adicional ao leitor, aumentando o interesse numa caça que se sabe estar menos perto da sua conclusão do que pareceria.
Curiosamente essas mensagens acabarão por dar corpo a uma reviravolta de contornos exagerados - ainda que no contexto destes livro não funcione mal - que parece provar a premissa de que Patterson continua a ser o pai destes livros.
Pela maneira de estruturar a história mantendo a informação essencial para si próprio em nome de um efeito surpresa final que surge num pedaço de história que parece à parte do livro até aí. Enquanto que a informação periféica enche capítulos aproximando o livro do romance e afastando-o do thriller que, muito pragmaticamente, deveria ser em exclusivo.
Que a vida emocional dos dois polícias de serviço ocupe mais tempo do que o desenvolvimento do assassino é paradigmático de que Patterson continua a ser o principal autor destas histórias. Afinal estes dois polícias são um antigo casal sob tensão romântica ao trabalharem juntos por um objectivo maior que ultrapassa as suas desavenças.
Esta parece ser a única abordagem dramática (?) que o autor consegue descortinar para as relações entre elementos de diferentes géneros dentro das forças policiais, como a série NYPD Red - a par dos volumes de Alex Cross - tem deixado evidente.
Os livros de James Patterson acabam por se englobar numa redoma de análise na qual a sua classificação (a haver uma...) cai numa escala auto-referencial dos que resultaram melhor ou pior no conjunto de livros - cada vez mais similares entre si, varie o tema o quanto variar - que dele se leram nos últimos tempos.
Este cai para o lado da satisfação depois de se ter experimentado a frustação de um Eu, Alex Cross.
O grande trunfo do escritor está no facto da percepção dos seus livros ficar sempre num patamar intermédio acima do razoável no qual algumas boas ideias vão - por mais um pouco - valendo mais do que essa uniformização do seu trabalho.


Invisível (James Patterson e David Ellis)
Topseller
1ª edição - Julho de 2014
352 páginas

domingo, 25 de janeiro de 2015

Histórias vividas

O título informa-nos sem embaraço da herança que este livro tem para com o clássico de Ernest Hemingway.
O que lemos só o confirma, uma escrita directa e sem subterfúgios ao serviço da história de um velho homem que se entrega à Natureza - e à sua natureza - no final da vida quando poucas ligações humanas lhe restam.
Um homem que já só é caçador quando a Natureza o confronta e não por qualquer gosto sádico. Um homem que deixa o mundo moderno ao abandono e retorna ao chamamento da sua comunhão com o mundo natural.
Não que ele deixe de tentar preservar uma ideia de si próprio enquanto dominador da Natureza, tomando conta do jipe e tendo consigo as suas duas espingardas.
Trata-se da crença no seu próprio mito que vai esmorecendo no ritmo a que o jipe que o trouxe de volta ao mato vai enferrujando parado e sem préstimo senão o de lhe recordar o orgulho que lhe proporcionava.
Sem ser um caçador, ali entre uma população que ainda vive em comunhão com as crenças antigas, ele torna-se o sábio local.
Transmite-lhes serenidade com a sua presença e mesmo quando dele esperam que use as suas armas ele prefere dar à própria Natureza uma hipótese mais.
Transmite-lhes a Razão que domina os medos sobrenaturais daquela gente e transmite o seu conhecimento feito de histórias de pessoas que conheceu ou que lhe transmitiram ao longo da vida.
A sua presença naquela aldeia é a redescoberta de um propósito depois da morte da sua mulher e a chegada da idade adulta dos seus filhos.
Não aceitando uma reforma inactiva que espera muitos dos que se entregam ao conforto da modernidade, voltou a viver as dificuldades que um espírito mais novo busca
Fá-lo para legar àquele grupo de pessoas os seus conhecimentos, engrandecendo a história oral que um local como a aldeia no Norte de Moçambique preserva.
Há quem não precise da tecnologia que tomamos como indispensável à vida moderna, antes de uma sabedoria partilhada que possa derramar-se de uma geração mais velha para uma mais nova e assim vá ensinando a viver.
O livro de Sérgio Veiga sugere isso muito bem porque se lê e logo tem a sonoridade de um relato caloroso feito face a face.
Uma herança que ele nos transmite através de um seu avatar literário de nome Hermenegildo. Um nome que significa algo muito próximo de "sacrifício absoluto".
A personagem faz esse sacrifício físico apenas após redimir aquilo que lhe enchia a alma.
Não há como não concluir a partir disso que há gente viva dentro deste livro. Histórias que não parecem poder ter sido inventadas mas que têm obrigatoriamente de ter sido vividas.


O Velho e o Mato (Sérgio Veiga)
Marcador
1ª edição - Julho de 2014
176 páginas

domingo, 18 de janeiro de 2015

Força das mulheres

Este é um daqueles mistérios de uma aldeia inteira que se revelam melodramas feios, cheios dos pesadelos escondidos na alma por culpa dos desgostos escondidos no quarto.
Uma história um pouco vaga acerca do Tempo, para a qual se pode fazer o esforço de tentar localizar o período em que decorre com precisão através dos seus detalhes, mas que funciona ainda melhor quando é deixada num limbo difuso,
A aldeia perdida no tempo - e no espaço - funciona como o retrato abrangente de um país que, desde 1946 quando surgia como uma bela maçã podre na capa da Time e até hoje, continua a estar preso entre o Passado enraizado e a perspectiva de um Futuro que lhe é oferecido.
Um pé em cada margem do rio do Tempo, aproveitando a metáfora em que o próprio livro estabelece a sua geografia, querendo cair para aquela onde tudo é imutável e regido pela imagem de Fé que dá poder mesmo aos insignificantes enquanto da outra os chamam à razão e lhes oferecem a possibilidade de descobrir as possibilidade do mundo.
O autor criou um lugar com uma história que o faz valer por si próprio e que assume
Um lugar que conquista através do molde de cada uma das vidas individuais que dentro dele se cruzam e que tocam o cerne contido naquelas três mulheres que são em simultâneo familiares e estranhas entre si.
Mulheres que se viram sempre sujeitas às circunstâncias da vida, mesmo quando julgavam tomar opções em seu próprio favor.
Uma mãe e duas filhas levadas a concepções próprias do que devia ser o seu modo de vida ao ponto de se afastarem umas das outras.
Ainda que a mãe rente reatar a ligação que antes tinham entre as três, não são mais mãe e filhas, são três mulheres de personalidade vincadas.
Mulheres de força por se terem tornado mulheres à força, tentando impor aos restantes a sua vontade num combate entre mãe e filha que é também o combate entre a sabedoria e a crendice.
A sabedoria que Júlia tentou passar às filhas e ainda tenta passar às mulheres da aldeia (se não mesmo à aldeia inteira) e a crendice com que Adelaide manipula a aldeia em seu favor mas em desfavor da própria terra.
Uma velha costureira que se transforma numa sábia através das páginas de citações do Reader's Digest e uma mulher que se evade à violência doméstica através de um exército (literal) de filhos são apenas os dois exemplos maiores de uma aldeia cheia de grandes personagens - e personagens femininas.
Esta é a capacidade que mais se destaca de entre aquelas que a pena do autor nos mostra, a de dar vida às suas personagens, partindo do quotidiano banal (o que não é sinónimo de aceitável) para as fazer expressar o extraordinário.
Ainda mais significativo por ser uma capacidade de um autor masculino para criar tantas e tão distintas personagens femininas memoráveis.
De João Felgar há também que dizer que é um escritor cheio de promessa - ou não fosse este o seu primeiro livro - mas já com as ferramentas de uma sabedoria literária que lhe permitiram escrever um livro memorável.
Com elas consegue uma exímia gestão estrutural, rítmica e emocional: revelando ou guardando a informação (sem artificiais cliffhangers) conforme isso melhor funciona para que o leitor esteja em sintonia com as vidas das personagens e seja melhor servido pelo seu conhecimento da história à medida que esta se desenrola.
Tenha-lhe tudo isso vindo da experiência própria ou de uma rica imaginação em sintonia com o país em que vive, é uma capacidade que se encontra com mais raridade do que gostaríamos e que necessita de um talento puro para ganhar forma a partir da escrita.


Terra de Milagres (João Felgar)
Clube do Autor
1ª edição - Setembro de 2014
280 páginas