sábado, 22 de novembro de 2014

Quando o confronto é a resposta

A combinação do ambiente gótico e da literatura policial que Marc Pastor traz para A Mulher Má evoca com elegância as obras de Edgar Allan Poe, autor que o Espanhol não deixa de nomear ao longo das suas páginas.
Parece ser o estilo devido a uma Barcelona no início do século XX em plena fase de transição, tentando albergar tanto o progresso como a memória mas na qual primeiro parece ter-se espalhado a vilania.
A vilania sempre se apropiou da modernidade antes da restante sociedade, pelo que tal momento de transformação é excepcional para o trabalho de Marc Pastor.
O estudo do Mal que faz a partir da história verídica de uma raptora de crianças fala de um crime inimaginável para aquele período. Executado pela mão da mais inesperada vilã, uma mulher também já mãe.
Esse estudo tem maior impacto porque é feito contra a ingenuidade envolvente, em que as pessoas confiavam que tudo correria bem com as suas crianças.
O nível de confiança rapidamente afectado pela crueldade nunca antes vista - ou não lembrada, pois a humanidade tende a deixar-se surpreender por ela de tempos a tempos - e transformando-se num nível de preocupação demasiado elevado que já se ameça transformar em vigilância restringente.
Se o Mal existe e se manifesta de forma sempre nova, há que garantir que a consciência dele também evolui, mas tentando evitar que ela própria se transforme numa forma de Mal (menor, talvez).
Uma luta pela preservação de algo de verdadeiramente Bom que resista imutável contra cada novo passo do mundo.
Neste livros isso traduz-se em pequenas batalhas.
O século que terminou em confronto com o que acaba de começar. A razão contra a cren(dice)ça. A evolução contra a pulsão.
Marc Pastor reforça esse confronto entre a assombração e a realidade do Mal fazendo Edgar Allan Poe dialogar com Dashiell Hammett.
Moisès Corvo, detective da polícia que investe mais de si do que é suposto e que não consegue aceitar a fraca resolução do caso, é o Sam Spade d'A Mulher Má.
Se um nome excepcional faz metade do personagem, então este detective poderia quase de imediato entrar na galeria de grandes protagonistas do Policial.
Está perto disso, visto que Marc Pastor trabalha os seus diálogos fazendo justiça a Hammett e às gerações que influenciou, dando uma verve às disputas do detective que se saboreiam como nos melhores noir.
Infelizmente não chega a inscrever-se nessa galeria. O detective acrescenta muito ao livro, um sentido de propósito e uma força motriz para muitos capítulos, mas não recebe de volta a devida atenção por parte do autor. Como personagem é tratado apenas por fogachos.
Parte da culpa para tal está no facto da atenção de Pastor estar dividida entre os elementos essenciais da sua história e um que ele adicionou crendo-o como tal sem razão. Falo da sua escolha para narrador da Morte.
Uma escolha que vem adicionar uma espécie de sentido de magia ao seu livro, sem que esse seja realmente necessário pois o ambiente gótico e amedrontante prevalece sem necessidade de tal narrador.
O seu único benefício - e chamá-lo assim é duvidoso - é o alívio que proporciona ao contribuir com humor negro (novamente o talento de Marc Pastor para as palavras das suas personagens) e bastante ironia nascida da relação conflituosa entre a sua função e a sua presença entre humanos.
Continua a tratar-se de um artifício. Não resultava em A Rapariga que Roubava Livros - nem, numa aproximação do mesmo ãmbito, em Visto do Céu - nem resulta aqui.
Funciona como um elemento de distracção para o leitor (em parte) e para o escritor (sobretudo) daquilo que é o cerne do trabalho do romance.
Melhor seria ter um livro dedicado inteiramente à Morte como protagonista de uma vivência atemporal com visitas ao nosso pequeno mundo.
Acaba por deturpar a memória do que foi o livro, um policial gótico explorando a essência do Mal, mesmo se não impede que se recomende vivamente a sua leitura.


A Mulher Má (Marc Pastor)
Topseller
1ª edição - Setembro de 2014
254 páginas

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