segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Geografia Americana

A narrativa acerca de Matthew King é feita pela voz dele mesmo e no Presente, obrigando o leitor a partilhar o que ele sente a cada momento com uma intensidade acrescida.
Não é um método inovador mas neste caso prima pela eficácia consistente que impede que se perca a ligação com a história deste homem.
Advogado descendente da realeza Havaiana com a mulher em coma prestes a ser "desligada da máquina" e com duas filhas das quais conhece muito pouco e com quem não sabe lidar.
Tendo-se sempre entregue ao seu trabalho, que sabe que lhe consumiu mais tempo do que o devido, encontra-se pela primeira vez na vida a braços com uma situação que é incapaz de racionalizar e que o vai levar numa viagem de múltiplas descobertas.
Descoberta de si mesmo, descoberta da verdadeira amplitude da realidade escondida pela fachada feliz do seu casamento e descoberta da fidelidade emocional associada à turbulência adolescente da sua filha mais velha.
Não que esta descoberta se afigure fácil, pois se há característica permanente em Matthew, mesmo perante a mais dolorosa adversidade, é a de total alheamento.
Matthew não muda de imediato, nem mesmo quando descobre que a mulher o traía e que foi isso que afastou a filha para um colégio interno.
Só durante a road trip que se segue, uma peregrinação de amor em busca do homem que deveria importar mais do que ele à sua esposa, é que ele começa a desabrochar como personagem multidimensional.
Que a transformação aconteça ao longo desses momentos em que ele foge do território que costuma conhecer torna-a mais credível, mesmo sendo ainda uma transformação súbita que se segue a um verdadeiro twist no desenvolvimento da história.
A viagem acrescenta momentos de um certo humor (sombrio, apesar de tudo) que alivia a carga emocional do livro.
Somado à contenção com que a autora escreve, que sustém a tristeza brotante da trama sem retirar sensibilidade às palavras que se lêem, o humor ajuda muito a que o melodrama não desabe sob o peso da sua crescente melancolia caótica.
Ainda que parte desse humor seja artificalmente gerada com a presença de um segundo adolescente - amigo e apoio da filha de Matthew - e que seja mais honesto e dilacerante quando nasce da honestidade infantil da filha mais nova de Matthew.
As jovens raparigas são mesmo duas excelentes personagens que marcam a diferença pela maneira como afectam o seu pai, protagonista masculino mais sério mesmo que não avesso a um diálogo de interrogação interior de alguma fragilidade - como se emocionalmente nunca tivesse deixado de ser adolescente, apenas desse o salto para se mostrar um homem.
Talvez por nascerem de experiências mais pessoais da autora, creio que teria sido interessante ver as duas filhas de Matthew tomarem as rédeas da narrativa, sem que isso queira dizer que ele não é uma personagem à altura da narrativa ou de cânones pessoais de memoráveis personagens (masculinas).
Só a sua relação com a herança - um território imenso prestes a ser vendido para um grande projecto imobiliário - sobre a qual ele tem a decisão final (mas cuja posse partilha com um imenso número de primos) me parece menos explorada do que deveria ser para que nos momentos finais do livro se acreditasse mais na sua atitude.
De entre os descendentes do título, ele como descendente da própria imponência do arquipélago do Havai está menos bem composto do que as suas filhas como descendentes do desfasamento entre um casal.
A importância da sua decisão para a sobrevivência do Havai e da sua identidade histórica (que ressente não ter perseguido antes) como mais do memórias nunca é tão bem definida como a mais simples significância dos terrenos como legado palpável que possa deixar às filhas.
Mesmo assim, a autora consegue ainda transmitir uma ideia do Havai como cenário dramático de força - e até força histórica - que é raro vermos por cá na ficção que se serve da região como paraíso turístico.
Com Os Descendentes fica-se com a forte promessa de uma nova voz ficcional Americana e com o nascido interesse acerca de uma geografia Americana que parecia quase não existir na boa ficção.


Os Descendentes (Kaui Hart Hemmings)
Editorial Presença
2ª edição - Janeiro de 2012
304 páginas

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