domingo, 14 de setembro de 2014

A caminho da grande literatura

A história começa como uma aventura de uma criança fugida de casa, num relato que se pode considerar uma aproximação à literatura juvenil.
O tónico da amizade que esse miúdo cria com um velho pastor ajuda a que se sinta uma miríade de bons sentimentos exalando da história, o que só reforça a ideia inicial.
História que é evidentemente para adultos e isso deve-se a um realismo que vem da forma como evidencia o cansaço e a fome mas, também, do silêncio com que aqueles dois homens se relacional e, de certo modo, se exprimem um para com o outro.
Um realismo que está também na forte sugestão de desalento e medo que a escrita tem desde o início mas que só se torna mais definida quando o livro avança.
O relato vai ainda mais longe quando mostra o mal sem filtros. O vilão no caminho da dupla de viandantes não é apenas uma vaga figura em perseguição, é um opositor cheio de recursos de má índole e sem qualquer limitação moral.
Esse é o grande choque de que o romance é capaz, de fazer o leitor penetrar no ambiente aventuroso e bucólico dos bosques do interior espanhol (pobre), para depois lhe dar a (re)conhecer a dureza do mundo que está para lá da sua orla.
Uma versão sem filtros da ideia de "conto de fada", voltando ao aviso do tenebroso que os Grimm recolheram (e depois amenizaram).
Tenebroso moderno, a mais dura realidade reconhecível do mundo actual a pesar sobre a nossa alma numa escrita carregada da sugestão aflitiva do horror.
Só que essa ideia de "conto de fada" também leva a que a a história tome muitos caminhos que a vão simplificando.
Mesmo que o trabalho de escrita o disfarce, há um grau significativo de previsibilidade que afecta a história.
O trabalho de escrita vence com a procura da economia, o corte no supérfulo do léxico e, sobretudo, do conteúdo.
O autor não escreve as evidências da história até que seja inevitável os personagens a elas se referirem. E isso reforça os sentimentos de temor e desalento que o leitor recebe da história, mas no final a concretização dos motivos para esses sentimentos não consegue deixar de assentar em alguns lugares-comuns.
Isso acontece porque por várias vezes a opção de Jesús Carrasco é a de usar a história como um sermão, valendo-se de representações metafóricas nada discretas.
Como a do final do livro, uma chuva que vem limpar feridas do corpo e purificar feridas da alma, símbolo de um perdão dos céus. Simbolo mais repetidamente usado - e significado mais esgotado - talvez não haja.
Mesmo assim a impressão que o livro deixa do autor é a promessa de um feito maior breve e não tardio.
O romance deixa marcas no leitor devido á sua coragem, espera-se agora que o autor se torne mais sagaz no domínio das suas próprias intenções, para que a qualidade global do livro reflicta as melhores intenções literárias - e não morais - do autor.


Intempérie (Jesús Carrasco)
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1ª edição - Abril de 2014
216 páginas

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