quarta-feira, 5 de março de 2014

O habitual e o radical

Passaram-se menos meses desta vez, mas o apelo deste vício escapista já se voltava a fazer sentir e não há motivos para o contrariar.
Com uma mesma personagem a ser protagonista de livro para livro não há já muito a analisar sobre isso, sendo a variação de cenário que dá pistas de leitura interessantes. Sobretudo acerca da gestão do público e das intenções do autor ao longo de uma série com um grande número de tomos e vendas de enorme .
Desta vez Cross enfrenta um crime macrabo e de enorme crueldade - o massacre e a mutilação de uma família inteira - que o leva a uma teia de assassinatos que servem de controlo político aos líderes de poderes instituídos em países africanos cujos regimes variam entre a democracia duvidosa e a confessa ditadura.
O livro beneficia de um cenário tão diferente dos anteriores para ganhar uma certa frescura. Ainda só tivemos três livros da série editados por cá, mas suponho que essa seja uma das necessidades constantes (embora um ou outro livro possa não conseguir começar com tanta originalidade como esperado) para a série durar vinte e um tomos até agora.
Claro que essa frescura significa, no caso deste thriller, descrições desinibidas de cenas violentas. Isso é um risco perante um público generalista como é o desta série, mas a motivação para tal torna-se entendível perante as intenções do autor - e nem pode ser julgada sem as ter em conta.
Essas intenções passam pela consciencialização para as atrocidades cometidas naquela zona do mundo - depreendendo-se que a um público norte-americano pouco informado sobre o que não seja a sua realidade local.
A impressão violenta da escrita serve, precisamente, para vincar o quão a realidade é ainda mais violenta. E surge combinada com cenas de exposição, como aquelas em que Cross tem de visitar e servir num campo de refugiados no exacto momento em que este é atacado.
Haverá quem não goste de ver o personagem a servir de vazão à moralidade do autor - que, por outro lado, tem por norma incluir nos seus livros referências elogiosas a obras que sejam do seu agrado - e não porque esta não seja a mais correcta, porque gera uma variação que pode existir mal sob o nome de Alex Cross.
Essa dimensão de denúncia leva Cross a um destino e a uma actuação que são um desvio acentuado ao que é hábito na série.
A forma como Alex Cross pretende actuar - a solo! - num país que lhe é estranho tem mais que ver com um herói de acção desligado de bases reais do que a de detective urbano recorrendo à sua análise de psicólogo.
Parece tratar-se de uma aproximação a um papel misto entre espião e mercenário, em que a coerência da personagem é levada ao limite - se o atravessa ou se fica microscopicamente aquém dele é uma decisão que cada leitor fará no momento de ler o próximo volume.
Sabendo o leitor que Cross não poderá morrer ou a série terminaria, é preciso que este comece por aceitar o extraordinário desta situação.
Sendo verdade que Patterson não deixa que, desta vez, Cross se safe imaculadamente ou sem ajudas alheias da situação em que se envolveu, também o é que há uma leitura egocêntrica - e um pouco egoísta num protagonista cujos filhos já perderam a mãe e cuja família é colocada em perigo várias vezes - de Cross acerca do seu papel de herói do mundo todo.
Por isso, uma certa despreocupação com o nome do personagem que comanda a série e uma atenção quase exclusiva aos acontecimentos poderá ser a combinação ideal para o apreço deste livro. Depois se verá se a série evoluiu.
Afinal, de todas as criações de Patterson que até agora conhecemos, Alex Cross continua a ser a mais interessante (ainda que o potencial de Private - Agência Internacional de Investigação possa vir a mudar essa opinião).


Alex Cross: A Caça (James Patterson)
Topseller
1ª edição - Novembro de 2013
384 páginas

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