sábado, 25 de maio de 2013

A versão moderna de um amor antigo

Este livro é a concretização literária da intuição que acompanhou desde as primeiras interpretações a história da ira com que Aquiles tratou Heitor depois da morte de Pátroclo.
Uma tradução para os termos mais óbvios do amor moderno, em vez da mera assumpção do significado mais lato desse termo para as questões de honra e camaradagem que conduziam os heróis no poema épico.
A autora, que pelo que diz na badana se formou precisamente nos temas e nos textos que usa comom matéria para este seu romance, parece ter decidido converter a masculinidade narrativa em algo mais propício a um público feminino e, tendencialmente, jovem.
A forma que encontrou para divulgar a literatura que ela própria achará indispensável ao maior número de leitores contemporâneos que não terão vontade ou capacidade para pegar no texto "original".
Maior número que passará pelas leitoras jovens ou a prolongarem esse carácter nas suas leituras, pela amostra do tipo de ficção importada em abundância para os escaparates locais.
Esta ideia até poderá ser compreendida com alguma abertura por cá, visto que em Portugal sempre se teve o benefício de ter um contacto precoce com A Ilíada (e com A Odisseia, já agora), pelo menos através da presença das adaptações feitas por João de Barros no programa escolar de leitura (no meu tempo, pelo menos, assim era).
Aceitando esta ideia para as intenções da autora, analise-se a concretização dentro dos seus respectivos limites.
A escolha do par romântico em causa só é arriscada porque a relação de Aquiles e Pátroclo não é usada como cerne da obra, mas como motivo que precipita o acto maior e mais indigno de Aquiles.
Tal escolha beneficia da falta de elementos biográficos detalhados sobre Pátroclo, que permitem à autora usá-lo como protagonista e tomar as liberdades necessárias.
Já a homossexualidade abertamente descrita, mesmo que com muitos cuidados de linguagem da autora, não provocará choque algum pois a carga erótica destes heróis sempre foi sendo explorada pelas variações do tema mais recentes - com as cinematográficas liderando a lista.
Trata a autora de contar a história desta dupla desde o momento em que um rapaz toma o outro sob a sua protecção até que um homem perde aquele que o acompanhou toda a vida.
Esta necessidade de construir o romance como um evoluir de etapas, da adolescência à maturidade (do amor como dos personagens), causará um problema que recai, sobretudo, sobre a expectativa. Os tempos "mortos" que são dedicados ao desenvolvimento da relação atrasam os momentos que são sempre os que se pretendem ler, que estão no poema e em todas as obras que virão depois: no fundo, a aventura.
Nas linhas gerais com que o romance entre os dois foi estabelecido, não creio que fosse necessário tanto tempo - e, em parte, tanta modéstia - para levar à situação que se desenvolverá nas acções decisivas de Aquiles na guerra de Tróia.
Até porque no início da relação, a autora evita questionar as questões mais pertinentes - e, eventualmente, fracturantes. Com a empatia imediata e injustificada que Aquiles sente por Pátroclo - um amor à primeira vista, portanto - é desnecessário à autora ponderar se a orientação sexual de Aquiles se ficará a dever a uma formatação de nascença ou ao convívio exclusivo com rapazes da sua idade orientados para a excelência física em combate.
Evitando esta questão, a autora poderia ter evitado, igualmente, a exposição da vida sexual deles. Por este aspecto a orientação do livro para um determinado género poderá ser colocada em causa.
A qualidade da descrição do sexo entre os dois pode ser alvo de censura severa devido ao uso enjoativo de metáforas demasiado delicadas. O comportamento de um para com o outro, terem vivido em isolamento e, acima de tudo, continuarem a ser homens - apesar dos louvores à beleza que se eleva acima de considerações de género - fazia esperar que a sua intimidade começasse por envolver alguma brusquidão para depois amadurecer como tudo o resto nas suas vidas.
Numa perspectiva mais benéfica ao romance, a relação íntima dos dois proporciona alguns dos melhores momentos do livro, num âmbito de estratégia política nos bastidores.
A insistência de Aquiles para que Pátroclo o acompanhe sempre ajuda a caracterizá-lo desde muito cedo como impetuoso e pouco cínico. E permite, ainda, ter uma visão interna da abordagem de uns intervenientes para com os outros, incluindo insinuações (que julgam ser) menos abonatórias para com Aquiles, num afastamento das representações que o aproximavam da perfeição.
Tão cerrado sobre duas personagens, o livro acaba por destacar o valor discreto adquirido por Pátroclo para os outros combatentes na sua função de médico. Isso ajuda a retirá-lo da sombra de Aquiles que recusa que ele se aproxime da frente de combate - o que o tornaria numa figura inútil durante quase um terço do livro.
Apesar do espaço ocupado pelas duas personagens, a fidelidade da autora aos mitos que estudou levam, por exemplo, a que a mãe de Aquiles, mesmo com as suas aparições irregulares, seja uma das melhores, senão mesmo a melhor, personagem do livro.
A adaptação do tema a novos públicos não trata de purgar a história das suas conotações mitológicas, antes adapta-as a um entendimento humano moderno sem tentar humanizar a história a tal ponto que esta se tornasse numa mera aventura. Os deuses são os intervenientes directos ou indirectos com as suas falhas humanas que ajudam a assentuar o processo pelo qual o próprio Aquiles vai deixando que a sua aura - aqui imposta pela mãe, lá está - se abra para o seu lado humano.
Essa fidelidade ajuda a transformar a amálgama de intenções numa abordagem coerente e agradável, não desvirtuando o que seriam os propósitos narrativos de Homero nesse aspecto.
Tal como o faz, excepto nas cenas de sexo, o cuidado linguístico da autora - que parece ter beneficiado de uma cuidada tradução - consegue uma ligação das formas mais clássicas aos desejos actuais de agilidade do texto.
Um grande erro estrutural vem, no entanto, criar um problema grave para a avaliação a ser feita ao trabalho de Madeline Miller. Erro que facilmente se intui desde o início mas só se confirma quase no final do livro: a utilização do próprio Pátroclo como narrador.
Sabendo que Pátroclo irá de morrer antes que o livro acabe, um autor mais arguto teria escrito na perspectiva de uma terceira pessoa.
Um autor mais corajoso teria recomeçado o trabalho ao abeirar-se do bloco final - e um dos mais importantes -do livro.
Miller, perante o longo trabalho que já tinha tido e alguns bons efeitos que tinha alcançado - dos descritos acima, o maior sendo transformar num empático herói o personagem discreto que Pátroclo é quase sempre -, escolheu retorcer a lógica da credibilidade de forma a continuar a narrar a história através do seu protagonista.
Isto faz com que, no momento em que a reinvenção da autora se fortalece com as imagens maiores de heroicidade do mito tal como o conhecemos, a voz do livro torna-se um incómodo.
Só a agilidade do texto, que traz o leitor embalado, disfarça este defeito para que se conclua a leitura.


O Canto de Aquiles (Madeline Miller)
Bertrand Editora
1ª edição - Fevereiro de 2013
344 páginas

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