terça-feira, 9 de abril de 2013

Separado do livro

Ao fim de poucas dezenas de páginas o protagonista utiliza o seu próprio conhecimento d'O Deus das Moscas para caracterizar a realidade ao seu redor.
A referência tem um efeito bipolar sobre a maneira como se encara a leitura do livro e como, depois, se faz a sua análise.
Assenta o universo em que se desenvolve a narrativa num mundo reconhecível e em que os personagens estão ao nível dos leitores. Isso evita que o esforço de criação seja demasiado grande apenas para convencer que há uma impossível erradicação de referências num futuro literário mais ou menos distante.
Carrega consigo o peso da referência de grande qualidade que procura agigantar o livro numa comparação que tem menos hipóteses de perdão do erro e mais minúcia na identificação de elementos de pouca originalidade.
Essa segunda parte da carga que a referência traz consigo tem de ser o próprio ponto de partida da abordagem, pois a relação entre os dois livros é demasiado breve para ser aceite. Nada mais além das crianças num mundo sem adultos à vista.
Se é discutível se O Deus das Moscas é um livro distópico, sabemos pelo menos que ele serve de comentário a uma outra noção de civilização que poderá estar a chegar. A Floresta Mecânica não poderá ser sequer equacionado como integrante da literatura distópica visto que os seus métodos de isolamento dos personagens se passam - assim nos indica a própria referência - no presente.
Aliás, A Floresta Mecânica não pretende falar sobre uma outra sociedade ou uma sua recriação por via da anarquia ou de valores individualistas dos jovens. Este livro é um thriller adolescente - e esta é uma adjectivação importante sobre o qual voltarei a escrever adiante.
Enquanto thriller, o seu comentário social contemporâneo acaba por ser feito acidentalmente, muito embora recordando momentos importantes da política mundial.
A maneira como os grupos extremistas no interior do colégio-prisão se comportam, um obedecendo a todas as regras da sociedade exterior e outro tentando ao máximo quebrá-las mas ambos tentando não sofrer castigo, lembram a política de estados moderna.
Entre as ameças de países que se pretendem afirmar sem vir a perder os benefícios que têm e as ameças invisíveis afirmadas em discurso pelas potências dominantes, são ao nível anti-diplomático o mesmo tipo de relação que funciona entre os jovens confinados e as regras externas que continuam a pender sobre eles na forma de castigos executados de formas invisíveis.
Como demasiadas vezes na literatura adolescente, estes são temas que surgem na visão do livro que têm leitores mais velhos, normalmente a braços com esta mesma função de análise que agora me ocupa.
Na verdade o contexto é muito mais simplista, centrado na dimensão individual do herói, das relações que cria ou que tenta evitar (por considerar que o seu tempo naquele colégio será breve) e na sua busca de uma forma de fuga.
Se ele é o herói da história é porque a sua individualidade o torna mais significativo do que os restantes miúdos que já estão dentro do colégio. Escolho escrever significativo e não interessante pois ele mostrar-se-á capaz de desvendar alguns dos mistérios do colégio mas não crescerá de herói (ou protagonista, se preferirem) para personagem.
A culpa da falta dessa transformação vem muito da falta de um "antes" mais aprofundado, de uma contextualização de quem ele era até ao momento de ali chegar que vá além da enumeração de atributos genéricos: orfão, desentrosado, inteligente.
O herói é a ferramenta essencial no desenvolvimento da trama em vez desta ser a ferramenta no desenvolvimento da personagem, típico de thrillers em que o contexto é mais importante do que as personagens, que como já se viu não é o caso aqui.
Em torno dele ocorrem várias reviravoltas, por vezes demasiado evidentes ou absurdas, quando não ambas ao mesmo tempo.
A partir desse mecanismo, a leitura torna-se cada vez mais veloz à medida que o livro avança. Mas não porque se crie tensão para que o leitor vire as páginas, mas antes por desinvestimento nas situações e nas personagens.
Pois se a trama não depende de nenhuma personagem em específico, torna-se bizarro enfrentar o facto de estarmos perante um livro onde nenhuma morte pode, realmente, ocorrer.
A violência é inócua. Armas, só as de paintball e, portanto, sangue e morte são uma miragem. Os alunos castigados desaparecem e o seu destino é apenas especulado. Uma morte, quando ocorre, é apenas uma nova revelação.
O adjectivo adolescente que tinha destacado influencia significativamente o livro porque causa uma esterilização do perigo, levando o leitor a separar-se do livro a cada momento, sem um verdadeiro sentimento de perigo ou ansiedade que se encorpore no thriller.


A Floresta Mecânica - Os Variantes (Robinson Wells)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Setembro de 2012
328 páginas

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