sexta-feira, 29 de março de 2013

Negócio subversivo

A grandeza do talento de Penelope Fitzgerald pode ser sentido com recurso à leitura de apenas este seu romance.
Talento na maneira como preenche cada página com o que é substancial, fazendo um retrato gratificante do mundo sobre o qual escreve com a brevidade que serve todo o tipo de leitores.
Talento para encorpar as suas páginas sem abusar das informações, agilizando o seu domínio sobre os parágrafos e deixando espaço ao que o leitor tem de poder descobrir, a solo, no que fica sugerido.
Será a súmula de uma identidade literária de excepcional relevo e merecedora de total apreço, de quem dá ao leitor tudo o que ele precisa para que se deslumbre mas não deixe de estar atento ao correr das páginas.
Pebelope Fitzgerald usa esse talento para nos falar de muitas lutas que aconteciam no final da década de 1960 num Reino Unido onde a tradição ainda pesava demais.
Muitas lutas travadas numa decisão única, a de Florence Green abrir uma livraria numa pequena localidade costeira. Decisão tão simples e pessoal e, no entanto, com tanta convulsão nos modos alheios.
A livraria montada naquele armazém de pouca serventia e afectado por severa humidade afronta a aristocracia  social instituída, toca a vida de uma jovem rapariga sem perspectivas de futuro, coloca em cheque o papel feminino após a Segunda Guerra Mundial e testa a moral vigente.
Naquele meio pequeno e fechado sobre si próprio, onde não chegou a guerra, onde a hierarquia não é perturbada há décadas, onde o resto do Mundo parece não ter lugar e onde o futuro é afastado com violência, Florence traz um pouco de tudo isso.
Esta mulher só, tornada viúva pela guerra, é a forasteira que tem mais sucesso do que os restantes comerciantes, que recebe ajuda do respeitado "eremita" local que rejeita falar a todos os outros, que dá trabalho a uma rapariga que deveria acabar num trabalho sem perspectivas, que coloca Lolita à venda e que, com isso, causa um furor de visitantes acorrendo das localidades em redor como nunca fora ali visto.
Não se trata apenas de um percalço na vida da vila, trata-se de uma revolução encarnada numa mulher só, que conhece o mundo e crê que ali, no "fim do mundo", pode
Pode, mas não da forma que crê. Rejeitada sucessivamente, ela apenas poderá deixar as primeiras marcas da realidade que conhece e defende: alguns livros vendidos, exemplares do romance de Nabokov espalhados entre os habitantes.
No final, a derrota é inevitável para Florence, mas dessa derrota pessoal ficam os primeiros indícios de uma vitória maior, conquistada por todos e não só por ela.
Só através da manipulação da lei e da pressão política foi aquela livraria derrotada, não pelo aluimento que anunciavam para o edifício. Esse resistiu, creio que pelo suporte das muralhas de livros no seu interior!
Florence parte, mas fecha-se o livro com a certeza que, mesmo não merecendo uma livraria, aquela localidade acabará por descobrir que não consegue de lá excluir os livros.
Foram esses perigosíssimos objectos que, ainda para mais nas mãos de uma mulher, abriram caminho a todas as possibilidades que estavam ainda a ser negadas.
Descobre-se no livro que temos em mãos o mesmo poder que tinha o livro por ele referido e que têm os melhores livros.
Um livro que desperta - por si próprio, pelos restantes livros e pelos lugares a que eles pertencem - genuínas paixão e revolta no leitor, consoante este vê o tratamento justo ou desprezível com que são tratados.
Um livro sobre uma livraria em 1959, escrito em 1979 em Inglaterra e editado em 2011 em Portugal. Lá como cá e então como agora.
A venda - ou a edição, já agora - de um livro pode ser um negócio de incrível poder, mesmo (sobretudo?), para aqueles que não os lêem mas os olham demoradamente - fascinados por um medo que lhes aumenta o desejo de lhes pegarem.
Não lemos por estes dias notícias sobre cidadãos Angolanos com cargos significativos que inciam processos contra o livro de uma editora portuguesa? E isto numa Era em que já quase não se lê tais objectos?
Mas o medo da palavra impressa que se espalha com facilidade entre quem a queira encontrar continua hoje, como naquela época, a ser uma realidade que nos apraz a todos nós, leitores.
Se A Livraria é um livro que consegue, para além do Tempo da narrativa, da escrita ou da leitura, fascinar o leitor pela sua qualidade e pela sua sempre renovada actualidade, creio que é caso para lhe começar a chamar "Clássico" sem temeridades de maior.
Afinal de contas é por momentos de leitura como estes que, dos escritores aos críticos amadores, tantos de nós se dedicam ainda a este "negócio".


A Livraria (Penelope Fitzgerald)
Clube do Autor
1ª edição - Agosto de 2011
180 páginas

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