domingo, 6 de janeiro de 2013

Chef literário

A primeira vez que tomei conhecimento do nome de Anthony Bourdain ainda ele não era conhecido como por estes dias mas ainda era um verdadeiro enfant terrible da cozinha.
Foi através do livro Cozinha Confidencial, que por si só ilustra a maneira como o autor foi transformado pela "indústria" de provocador imoderado em provocador mediatizado.
Na época em que o li, o livro tinha uma ilustração naive que parecia vir de uma certa desconsideração nacional pelo aspecto criminoso daquela equipa de cozinheiros (é comparar com esta imagem) mas que, ainda assim, deixava antever uma certa gandulagem ligada ao acto de cozinhar. Isso em vez da estilização em torno da reconhecível cara do chef que ocupa a capa quase por inteiro na mais recente edição a chegar às livrarias.
E quando o li, não havia sequer vislumbre de que as confissões irónicas e incontroláveis de Bourdain viessem a transformar-se numa sitcom romantizada com Bradley Cooper como protagonista!
Definitivamente, o tempo e as possibilidades de negócio tornam tudo aceitável e apetecível, até a descoberta de que as refeições dos melhores restaurantes (americanos, claro…) eram temperadas – e quem sabe se melhoradas – com sangue humano, drogas pesadas e, até, fluídos corporais dos mais variados!


Passaram-se anos até deparar com dois outros volumes com o nome de Bourdain impressos na capa. Que me despertaram ainda mais curiosidade por serem policiais.
Mas perdi-lhes o rasto, como causam tantos adiamentos em nome de outros livros mais importantes que havia a comprar, até há alguns meses atrás em que resgatei os dois últimos exemplares desses livros editados pela Ambar numa daquelas feiras que agora ocupam espaços de estações de metropolitano. (Feiras que são tema forte para uma abordagem própria aqui no blogue.)
O primeiro desses livros está lido e o segundo está guardado para ser saboreado quando este já estiver totalmente varrido da memória.
Começarei por dizer que não há assim tanto de policial aqui. Antes uma estratégia de cenarista de Bourdain que é colocar a acção a decorrer no coração da máfia de Manhattan.
Um ambiente que, pela verdade ou pelo mito, se tornou propício a combinar o gosto pela culinária – ou a ânsia pela comida italiana, dependendo do grau de sofisticação dos mafiosos envolvidos – com a criminalidade e a sua violência mais desproporcionada.
Mais ou menos o mesmo ambiente que Bourdain já tinha revelado que se gerava nos bastidores dos restaurantes por onde passou.
Tendo montado este cenário Bourdain delicia-se a promover o seu prazer pela comida e a sua ironia perante o negócio da restauração.
O romance é uma excêntrica diversão que não leva a máfia demasiado a sério. Não leva mesmo nada demasiado a sério a não ser a paixão de Tommy pelo seu ofício de chef adjunto.
Digamos que a choradeira do chef pela destruição da sua melhor faca, objecto intocável, é apenas um dos grande momentos a ocorrerem no livro. Sobretudo quando se sabe que as acusações dele nunca se aproximam da verdadeira causa da deformação da faca que ocorreu em plena cozinha – mas fora de horas – para desmembrar um “pedaço de carne” que colocava a máfia em risco perante o FBI.
O nível maior de diversão e ironia está, no entanto, reservado a quem já tiver lido as confissões de Bourdain.
É que a história do Dreadnaught Grill é a história da ascensão e do declínio (mais do declínio e o leitor assim prefere) dos verdadeiros restaurantes. Levado ao extremo e a roçar o absurdo, mas honesto como as várias histórias do género em Cozinha Confidencial.
Afinal de contas, o restaurante é uma fachada que o FBI pagou a um dos seus informadores. Mas este gosta tanto do negócio que pede empréstimos à máfia para se expandir… sem nenhuma noção do negócio!
O restaurante acaba nas mãos de um “gestor” (mafioso, claro) que faz tudo, excepto dar festa de anos com palhaços no interior do restaurante, para recuperar algum dinheiro. O pior é que o informador julga que, mesmo depois disso, o restaurante é o seu futuro e que pode ficar lá a trabalhar tendo denunciado os seus melhores clientes.
Por detrás deste cenário, o chef gasta o dinheiro em drogas e revende os melhores produtos para continuar com o vício (e recupera-se, sinal que isto é Bourdain a ironizar consigo próprio e a celebrar a sua recuperação). E Tommy, que arranjou o emprego porque o tio tinha ligações à máfia, dedica-se como o último idealista do mundo da restauração a trabalhar na cozinha de onde teve de limpar o sangue e conviver com o facto de estar um tipo desfeito em bocados à espera de ser despejado com o resto do lixo da semana.
Peripécias bastantes que só melhoram com os detalhes com que Bourdain se dedica a criar personagens que conseguem ir além da mera representação de papéis. E são elas que levam a sátira adiante com surpresas suficientes para não haver leitores descontentes.
Claro que Bourdain não é um escritor que se conte entre os melhores – apetecia dizer que não é tão bom escritor quanto é chef, mas não me foi dado a provar o seu trabalho nessa área – mas não se arrisca para além do que sabe. E isso é apanágio de quem tem, além de ideias e de vontade, inteligência para fazer um bom livro. Ou, se preferirem, de quem tem mão para mais este "prato".
Para os seus fãs actuais, que o viram em visita a Lisboa, podem contar com bons momentos de leitura do tempo em que Bourdain era um grande provocador sem perderem a admiração pelo actual mestre de cerimónias televisivo.


Um osso na garganta (Anthony Bourdain)
Ambar
1ª edição - Outubro de 2002
344 páginas

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