domingo, 30 de dezembro de 2012

Um investimento sem retorno

Com romances como este - sobretudo para quem, como eu, se afasta demasiadas vezes de material não ficcional - há sempre um fascínio pela descoberta de como lugares distantes eram em eras que parecem, de certa forma, mitificadas.
Neste caso a China no limiar do século XX, local de muitos e insondáveis mistérios para as mentes ocidentais do presente.
Desde logo a abordagem à medicina, feita com base numa representação do funcionamento do corpo humano como um todo interligado, que pode parecer um arcaísmo perante a ciência europeia da própria época mas antecipa as relações de causa e efeito entre os elementos mais díspares do corpo humano.
Como também o tratamento das causas prévias e subjacentes à maleita visível antecipam a ideia da psicanálise, por exemplo, demonstrando que a noção prática existente na Ásia era extraordinária faltando-lhe apenas um vocabulário objectivo ao gosto Europeu para ser melhor aceite.
A medicina é apenas um dos pormenores revelados de um país com uma cultura que é difícil de assimilar de imediato mas que exerce um fascínio tão grande como o espaço disponível no Palácio Imperial que acolhe diversas personalidades e outras tantas nacionalidades em jogos políticos intricados.
À medida que se acompanha o impaciente percurso do médico português, encontram-se cada vez mais detalhes, da realidade prosaica aos eventos exclusivos da China.
Embora algumas dessas descrições sejam emocionantes por si só, há um excesso de informação que vai engrossando o livro sem que depois este justifique a explanação de toda a pesquisa que Kunal Basu fez e da qual se depreende que tem muito orgulho.
Aceitar-se-ia melhor o débito de informações se estas acompanhassem uma imersão mais intensa e convincente do médico português nas possibilidades do país que o acolhe. Mas visto que ele rapidamente passa da arrogante relutância europeia perante a medicina oriental e da intensa obsessão com a cura da sífilis do seu pai para um concretizado desejo pela sua professora, torna-se numa personagem pouco interessante.
Com a sua perda de personalidade, o que fica a suportar a riqueza de detalhes é apenas uma história de como o cerebral europeu - que deixou uma noiva à espera - se deixa arrebatar pelo calor do exotismo.
O livro transforma-se sem chegar a trazer satisfação ao leitor que vê a história de assimilação de uma nova cultura - pois para aprender medicina o médico teve de aprender Mandarim ou escapar-lhe-iam detalhes essenciais - acabar sem uma resolução satisfatória depois de esquecida pelo próprio personagem.
Há que reconhecer que o investimento do leitor em tão grande número de páginas é grande, visto que estas exigem uma atenção à linguagem que retarda o folhear, sendo que raramente a causa para tal é a vontade de reapreciar um parágrafo: antes é a minúcia que é preciso ter para montar o puzzle da estrutura das orações do escritor.
Sem a satisfação do resultado da própria história para satisfazer tal investimento, não há hipótese de tornear a realidade para dizer que o livro merece ser lido.


O Português Inquieto (Kunal Basu)
Edições Asa
1ª edição - Abril de 2012
432 páginas

sábado, 22 de dezembro de 2012

Mais perto da composição ideal

Da primeira vez que me deparei com Giorgio Faletti não fiquei conquistado, mas também não fiquei afastado em definitivo.
As ideias eram demasiadas mas estavam lá com todo o seu potencial a precisar de um acerto mais eficaz.
Este seu livro vem, pelo contrário, com muito menos ideias mas muito mais riqueza, recuperando um elemento essencial que agora sinto que faltava ao seu livro anterior: um drama de personagens que precede a mera caracterização para servir o propósito da trama.
Trata-se de um livro de contornos muito mais "clássicos" do que o anterior, demorando-se com as duas personagens centrais - uma polícia sobrecarregada e um jornalista caído em desgraça que estão "condenados" desde o início a serem colegas e a terem um interesse romântico discreto (situação pouco imaginativa, mas útil a livro) - e as muito mais personagens secundárias que têm tempo para revelarem uma personalidade antes de servirem como mais uma peça para o puzzle final.
Estas personagens têm ligações a instituições sempre muito interessantes pela sua estrutura algo escondida e muito hierarquizada como são as forças militares e as estruturas católicas.
São elementos que vêm, também, adicionar um certo sabor a transgressão por parte do autor, o que cativa o público, mas a sua utilização vai-se encaixando sem exageros gratuitos.
A conjugação entre as várias personagens, os cenários em que se movem e os passados complicados, tornam a leitura numa corrida mais lenta em comparação com o outro livro do autor que já conhecemos, mas são elementos que tornam uma certa resistência necessária mais agradável.
E afinal, mesmo sendo o vilão da história um bombista e, portanto, mais apto para o thriller, acabamos por estar perante algo que é muito mais policial, por estar mais interessado nas personagens do que nas suas acções.
A demora na leitura de um livro (novamente) longo tem causas que acabam por merecer a quantidade de páginas extra. E estas podem criar alguns momentos mais intricados sem desmerecerem uma resolução capaz e lógica que surge logo de seguida.
Com tudo isto não pretendo esconder que Giorgio Faletti podia beneficiar com alguns cortes na linguagem em momentos de descrição minuciosa.
Tal faria com que apenas sugerisse o que tende a expôr - conquistando o leitor, que tem de investir mais na leitura - e reduziria ainda algumas páginas ao livro.
Se até aqui analisei o trabalho do escritor meramente enquanto tal, tenho também que assinalar o arrojo que teve um italiano em fazer passar pela sua história "americana" uma análise consciencializante do papel que os Estados Unidos da América têm no seu próprio tormento.
Colocar um bombista em acção em Nova Iorque, num ambiente pós-"11 de Setembro", arrisca sempre tocar num nervo ainda sensível.
Mas acabar por revelar que é o próprio passado do país que leva a que haja uma retribuição no momento presente é já ir além do elemento-choque para incorporar uma realidade histórica numa obra ficcional.
Um passado que não é só de relações externas, mas também da maneira como um país lida - usa? - com o seu próprio povo, ou não estivesse a Guerra do Vietname envolvida neste relato.
Com mais estes elementos acrescentados à mistura, Giorgio Faletti consegue guardar até ao fim uma surpresa forte que faz a espera valer a pena e aproxima-se do que deve ser a estrutura - fortificada pela experiência - para o género de livros que escreve.


Eu sou Deus (Giorgio Faletti)
Contraponto
1ª edição - Maio de 2012
376 páginas

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A Consciência dos Tempos

Depois de Mona Lisa desaparecida ficou-me o gosto por um estilo de ensaio histórico de género policial que enrede num estilo emocionante um conjunto abrangente de revelações sobre o tempo em que decorreu.
Mas os elementos que unem estes dois livros - e, eventualmente, esta forma de abordagem - são mais complexos para a forma como encaramos o que o mundo foi e o que o mundo é por comparação.
Desde logo, o elemento criminal parece ser essencial para moldar uma reportagem longa a um page turner.
Isso leva a que os temas escolhidos sejam fortes e plenos de notoriedade mesmo tantos anos depois de ocorridos: antes o roubo da mais conhecida obra do mundo, agora um assassinato "impossível" numa carruagem de comboio.
O fulcro do tema que une os dois é, mais do que a criminalidade, a abordagem a um momento que mudou o âmbito do meio em que ocorreu, moldou o progresso futuro dos países em que se deu e, sobretudo, marcou um momento de perda de inocência do mundo.
Ambos os crimes marcam um momento em que uma confiança instituída se confronta com a transformação - para pior, claro - dos limites da moralidade humana.
A confiança que os franceses colocavam no valor cultural da Arte acreditando que esta se defendia de qualquer ameça é a mesma confiança que os ingleses colocavam no valor social das classes que protegiam as classes mais altas dos comportamentos desviantes das classes baixas.
O comboio, onde essa separação se exprimia fisicamente, era considerado seguro nesse aspecto, deixando o livro transparecer uma fé na separação auto-imposta de cada viajante de acordo com a classe do bilhete que comprara.
Os protestos quanto à segurança nos comboios falavam da impossibilidade de alguém se sentir mal e comunicá-lo ao condutor, mas não pensavam que alguém viria a entrar numa carruagem que não a sua - e, muito menos, que matasse alguém no interior do comboio.
São casos em que a honra culturalmente entendida servia como salvaguarda na mente de quase todos, o que torna ainda mais abrupto e violento o despreparado acordar para a nova realidade.
Claro que um livro com trezentas páginas não se sustenta só nesta perda da inocência.
Seguimos depois a investigação policial - e indignamo-nos com aspectos desta que hoje seriam inadmissíveis - até ao desenrolar do julgamento (a parte final do livro em que este perde algum ritmo por ser então demasiado minucioso).
Ficamos a conhecer o tipo de exploração jornalística do caso, muito mais desregulada e indecente do que a de hoje em dia.
No fundo ficamos a conhecer um momento em que o mundo estava confiante na sua auto-preservação à conta de regras de conduta não escritas. Mas em que estava, igualmente, latente - e até mesmo expectante - um carácter predador de um qualquer momento de menor dignidade humana.
Este momento da história do final do século XIX - nunca de forma isolada - haveria de deixar marcas nas exigências de exemplaridade que a sociedade haveria de fazer às entidades envolvidas no caso.
Na mesma medida, deixaria marcas na maneira como a sociedade reagiria, com tanto de fúria irracional como de curiosidade mórbida, ao tipo de delito cometido e noticiado mundialmente, sem controlo local de espécie alguma.
Mais um exemplo contribuindo para a perda de inocência que tornou os "bons cidadãos", em simultâneo, em vítimas e criminosos. Vítimas, inevitáveis, do seu próprio medo ao menos. Criminosos, por cumplicidade, da exploração de cada crime.
Os "bons cidadãos" ganharam consciência do mundo em que viviam e nós tomamos consciência das raízes do mundo em que agora vivemos. Tudo à conta de um homicídio violento numa carruagem de comboio que viajava com destino a Hackney ainda no ano de 1864.


O Chapéu do Sr. Briggs (Kate Colquhoun)
Bertrand Editora
1ª edição - Junho de 2012
312 páginas

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Biografia sóbria para uma vida dramática


Os contornos gerais da história de Aristides de Sousa Mendes são conhecidos, mas não há dúvida de que os detalhes devem ser melhor divulgados.
O salvamento de trinta mil vidas é um feito assinalável mas que ganha ainda mais força no contexto de uma vida definida pelo que o homem foi antes e sofreu depois.
A enormidade extraordinária do acto de passar vistos sem excepção alguma cresce pela maneira como surge - de uma dura confrontação da consciência com o dever que o manteve três dias prostrado perante si mesmo - e pela maneira como o deixará - na pobreza e muitas vezes só até ao fim da vida.
O que ele penou em nome de trinta mil vidas merece acompanhar todos os relatos que se vão esvaziando a pouco e pouco até deixar apenas um heroísmo fácil de alcançar.
Até porque não é só a consciência moral de Aristides que deve ser enaltecida, mas também a sua consciência enquanto servidor do país.
Aristides quebrou as regras que lhe eram ditadas pelo governo de Salazar por crer que estas estavam erradas perante a Constituição Portuguesa e que, como tal, estava a preservar a imagem de um país perante o Mundo e perante o Futuro.
Uma verdade que o Tempo tratou de confirmar não sem que antes o próprio Salazar - que, com a ingenuidade dos que medem nos outros a mesma elevação que é a sua, Aristides cria estar a ser mal aconselhado - recebesse louvores por ter permitido a tantas pessoas receberem vistos e atravessarem Portugal em direcção à salvação do outro lado do Oceano Atlântico.
Para se poder reconhecer o verdadeiro heroísmo do homem deve, pois, compreender-se o risco em que esteve a correcta memória dos seus actos.
Esta é uma biografia que valoriza essa percepção, sóbria e directa no relato dos dados mais importantes que marcaram a existência de Aristides.
José-Alain Fralon mostra um distanciamento reconhecido - e não reverente - ao sujeito sobre quem escreve, permitindo-lhe relatar sem embaraço nem exagero a verdade reconhecida.
Sendo essa a mais significativa característica de Fralon enquanto biógrafo, torna-se também no fundamental instrumento de frustação para o leitor em alguns momentos do livro.
O autor parece tocar alguns momentos da vida sem aprofundar - ou arriscar reflectir ele próprio - sobre os latentes confrontos entre o carácter um pouco dúbio e a acção sempre meritória do biografado.
Não se trataria de ceder a qualquer promiscuidade de paparazzo moderno, pelo contrário, serviria a enaltecer os actos de Aristides perante as suas falhas mundanas e compreensíveis.
Entenda-se tal reparo como a vontade de encontrar um tratamento dramático para a vida de Aristides que o encorpasse ainda mais como figura do seu tempo e como herói acima de qualquer outra das suas características.
Uma leitura importante que pede - pela dimensão e pelo tempo que sobre a sua publicação original passou - que nela peguem para mais longe chegarem com a matéria promissora com que se fez a vida do Cônsul de Bordéus.



Aristides de Sousa Mendes - Um Herói Português (José-Alain Fralon)
Editorial Presença
4ª edição - Outubro de 2012
128 páginas

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A (con)fusão de autor e narrador

Estes contos são exercícios de memória. Não sei se do autor mas, certamente, do narrador que aquele diz ser transversal a todos os textos  deste volume.
Digamos que, pelo menos, os locais dos eventos sugerem a coincidência entre autor e narrador. E isto é importante para a leitura global deste livro.
Até porque o livro comporta um intróito do autor que revela a insistência de alguns amigos de longa data na vontade de reler alguns dos seus contos, sugerindo que estes especialistas (palavra do autor) o são por (con)vivência directa com Fernando Évora - e as suas desventuras ou os seus relatos de café.
Os contos insinuam a necessidade de uma familiaridade com o contexto dos eventos - o contexto original de publicação em fanzines pode explicar tal noção. Não há ricas construções de ambientes e tanto os cenários como diversas personagens parecem fazer parte de um léxico comum, mais ou menos identificável por quem conheça aquelas personagens ou outras similares.
Nesta forma de escrita para um público "iniciado", talvez nos textos ressoem características dos locais e das culturas ali representadas, mas para quem lê os textos à distância geográfica fica apenas a curiosidade de infâncias distintas ou situações caricatas.
Tudo contado, demasiadas vezes, em jeito de despojamento realista, sem efeitos (ficcionais ou revisionistas) de êxtase ou catarse.
O relato assim deixa o leitor ora curioso ora frustrado, sem direito a confrontar o texto pois as histórias são tão singelas na sua composição que parecem de uma pessoalidade intocável - e que tal como está deveria ser intransmissível.
Rematando e comprovando esta ideia de memórias passadas a texto, Fernando Évora termina o livro com um Epílogo. Este é um conto novo em que ele continua o jogo de rememoriação para dentro dos próprios contos, citando a sua escrita e as suas verdadeiras ocorrências.
Dá a sensação de vir justificar a sua afirmação inicial de que o narrador de todos os contos é o mesmo e este acabam por se interligar, rematando o livro de maneira que este seja um contínuo e não uma compilação.
Forçado e desnecessário, dá uma estranheza ao livro que obriga, em definitivo, a confrontarmos esta ideia de continuidade com o primeiro dos contos, Cérebro, que traz logo abaixo do título um "Eu, o narrador, escrevi um conto de ficção científica".
Se estamos perante um modo de metalinguagem em que o narrador é uma personagem supra-contos e até supra-livro, então o autor deveria ter evitado pronunciar-se e ter reassumido a figura de narrador ainda o livro ia no intróito.
Neste jeito de revisão de vida - tal como denuncia o Epílogo até ao nada discreto último parágrafo - em que o narrador e o autor se confundem o livro não se une nem define o seu público além dos tais especialistas.


Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa (Fernando Évora)
Esfera do Caos
1ª edição - Agosto de 2012
130 páginas

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Poucas páginas de um grande fôlego

As novas tecnologias têm permito a muitos escritores (e argumentistas, já agora) encontrar soluções fáceis - e, consequentemente, simplistas - para tramas que montaram com esmero.
Pequenos precalços - um telemóvel que não foi colocado no modo "Silêncio", um portátil deixado desbloqueado em cima da mesa - que substituem o esforço das personagens que antes perdiam muito mais tempo a superarem as barreiras que encontravam.
O caso d'O Escritor-fantasma é o oposto, potenciando um trabalho clássico através das características da internet.
Ou seja, nesta história em que o correio de fã se confunde com a chantagem e em que a discussão entre escritores se confunde com a raiva, o email surge como hipótese de acelerar o processo de recepção das mensagens: em vez de decorrer num período alargado, tudo ocorre num único dia.
Mais do que isso, o email permite que o protagonista responda a quem a ele se dirige, ainda que continue sem conhecer a respectiva identidade de algum deles.
Esse é um detalhe, mas um detalhe significativo que permite realçar a perspicácia de Zoran Živković enquanto escritor a braços com o mundo moderno mas com a inventividade de uma literatura passada.
Este seu pequeno (mas riquíssimo) livro é um jogo desafiante sobre a natureza de ser escritor, sobretudo quando confrontado com as muitas exigências externas.
Não se trata apenas das exigências que outros fazem ao seu talento e esforço, mas também do facto de cada vez mais a escrita pausada e retrabalhada ver o tempo que lhe é devido diminuído pela escrita mais imediata.
No mundo de hoje, escreve-se (e lê-se, já agora) mais mas nem sempre melhor. Quanto texto produzimos (e encaramos) fora do âmbito literário? E quanto desse texto sobreviverá para lá do espaço limitado dos discos rígidos e da memória que salta para a página seguinte?
O livro serve como consciência das novas distracções que o mundo opõe à arte literária e do esforço que representa manter-se como peão desse mundo.
Tudo num estilo cativante que oferece um verdadeiro tratado de psicologia dos seus personagens, levado até ao limite por uma resolução da qual até se pode desconfiar mas na qual não se consegue acertar.
Um final que reafirma que tal execução só é possível num obra literária, reiterando a importância que esta ainda guarda e afirma por entre todas as outras artes narrativas.
Na verdade, o confronto a roçar o thriller que se faz por email só se consegue num meio que valoriza a palavra, que permite que tudo se passe apenas com uma única "presença física" mas com um trabalho redobrado na elaboração precisa do texto que é enviado ou recebido.
A verdadeira emoção surge dessa busca pela expressão exacta, pela correcta maneira de dar a entender ou de deixar por entender a verdadeira intenção do autor de cada missiva.
São um pouco mais de cem páginas com várias outras nuances que cada leitor quererá descobrir por si. Um trabalho de verdadeiro escritor sobre textos e falta de inspiração.

Numa nota paralela, devo recriminar (ligeiramente) a Cavalo de Ferro, editora que muito me agrada e que até hoje não me merecera tal reacção.
A verdade é que a presença do texto crítico de Michael A. Morrison no lugar de posfácio é um abuso editorial.
Não acredito que tenha sido só para encher páginas, pelo que não é nesse sentido que faço o reparo.
Assinalo-o como revelador de uma leitura d'O Escritor-fantasma que tem como base um conhecimento detalhado de toda a obra de Zoran Živković, a que o leitor português (ainda) não teve acesso.
O texto, que justifica um exercício literário que ainda não tínhamos conhecido da parte do escritor, acaba por servir como substituição à necessidade de publicar as restante obras do autor, assim justificando a escolha para edição deste texto recente por algo mais do que a sua actualidade.
O posfácio deveria vir com um aviso sério sobre as revelações que lá ocorrem e sobre a maneira como faz uso de muitos excertos do autor a que não tivemos acesso.
É um caso que faz pensar nos méritos da troca das edições portuguesas pelas inglesas para ter acesso completo ao autor. Não sendo um caso demasiado grave, é uma falha que atinge a sensibilidade dos leitores.



O Escritor-fantasma (Zoran Živković)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Maio de 2012
144 página

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Um divertimento

No texto Utilidade de uma Literatura Erótica, transcrito de uma conferência dada por Boris Vian, esta defende as qualidades dos textos desse género que lhes permitiram permanecer na exigente memória dos amantes da literatura.
As qualidades não eróticas dos mesmos, como a filosofia nos textos de Marquês de Sade, contrariando a expectativa do que deveria ser elogiado nesses textos.
Boris Vian reforça a ideia de que um texto erótico, como qualquer outro material erótico em qualquer suporte, tem uma funcionalidade que passa pela excitação do leitor.
A qualidade literária é questão de somenos para quem pretende escrever dentro desse género (e apetece dizê-lo olhando para o que por estes dias é publicado em catadupa e vende com fartura) que tem antes de mais de dar ao leitor o que o faça palpitar, talvez cumprindo um sistema que invento para o efeito: uma cena de sexo em capítulos intercalados e ameças cada vez menos veladas de tais cenas nos restantes.
Boris Vian faz, então, a defesa dos textos de género que escapam ao género, esquecendo várias vezes a utilidade que deveria estar a abordar.
Parece com isso estar a lançar a provocação para os seus próprios textos pornográficos que leremos de seguida.
Nesse primeiro texto mostra que podem existir textos de elevação literária e qualidade estética que são classificados como eróticos para depois se lançar em tentativas próprias, com momentos bem sucedidos mas raramente com a utilidade em mente.
Textos em que ele joga com o humor, com os subentendidos, com a réplica literata, mas sem grau maior de seriedade.
Como se escrever textos pornográficos fosse uma provocação de um autor sério que se pode - e deve - permitir tudo em nome da liberdade de criação.
E em nome da transgressão final, de não ser sempre sério, de permitir a si próprio - contra a opinião pública ou crítica - tirar prazer do seu talento e do ofício de escritor, deleitando-se com o que raramente é tido como material para escritores de primeira linha.
Do extremamente conseguido (e bem traduzido) divertimento em forma de poema que é A Marcha do Pepino ao momento maior de entre estes textos que é Drencula (leia-se com a pronúncia francesa para perceber bem o seu sentido), não haja dúvidas que todo o potencial para o género erótico sem uma ponta de seriedade estava em Boris Vian.
Mas o seu divertimento maior deverá ter sido mostrar ao mundo um material erótico que alimentasse uma polémica que para ele esteve sempre resolvida.


Escritos Pornográficos (Boris Vian)
Guerra & Paz
1ª edição - Setembro de 2010
98 páginas