terça-feira, 10 de abril de 2012

A propósito da Páscoa

Que altura mais indicada do que a Páscoa para ler o relato do que ocorreu até à e para lá da crucificação do "Homem que era Deus"?
Muitas das palavras que Max Gallo usa para tal são retiradas ipsis verbis dos Evangelhos, mas o efeito que ele virá a alcançar é muito diferente do que esses quatro textos canónicos têm tido desde a sua origem.
Isso começa desde logo pela inversão do relato que se dedica primeiro a Flávio, o centurião que supervisionou as crucificações de Jesus e dos dois ladrões, e que após esse momento se vai convertendo à visão do homem que conduziu a um derradeiro calvário.
Flávio é a concretização do legado que Jesus esperava ter deixado ao mundo, uma obra feita de palavras e actos que convertesse até o mais resiliente dos homens.
Só depois de tal viragem na vida do soldado o relato foca-se na vida de Jesus. Parece então que nada mais é a segunda parte do livro do que uma versão mais talentosa - porque reescrita pela mão de um romancista - e criteriosa - porque  - da mesma velha história.
Não é porque nos espaços em branco entre actos de Jesus vem Max Gallo a retrabalhar o relato conhecido.
As sugestões que o autor faz são discretas e, por isso, pouco alarmantes para os crentes que leiam o livro sem vontade de perceberem devidamente a forma como Gallo persegue o lado humano de Deus-Filho.
A subtileza de Max Gallo é o seu mais forte recurso para fazer do homem uma figura mais intrigante do que o deus.
Não sei se tal poderá ser considerado uma tradição da ficção do mundo de influência católica, mas não é totalmente nova essa visão de como o lado humano pode ser tão influente na visão que subsiste do lado divino desta mesma personagem.
O que distingue a visão de Max Gallo é que, além de humano, o seu Jesus sublinha a referência que se encontra na frase da cultura popular usada no século XX para muitos dos seus influentes artistas, "Foi o maior entertainer desde Jesus".
Este Jesus é, de facto, um entertainer que precisa do público. Tem ferramentas de político e de ilusionista, combina a retórica com o encantamento.
Pensando em dois dos seus milagres, equiparáveis no tema, o das Bodas de Caná (água tornada vinho) e o da Multiplicação do Pão (a comida de cinco que saceia cinco mil), vemos as duas atitudes contrastantes de Jesus.
No primeiro tenta rejeitar a intervenção que lhe pede a mãe porque "não chegou a sua hora", porque não está ainda no caminho da sua campanha para conquistar o povo e porque o número dos que verão aquele milagre será reduzido.
No segundo, já não precisando de dar provas aos que o adoram, rejeita a ideia dos discípulos de mandar embora a multidão e sedu-la ainda mais uma vez em nome do elogio que quer manter à sua volta e em nome da memória de si mesmo que lança ao futuro.
Este Jesus é humano e vive os nossos vícios (e os da nossa moderna classe política), tal como os deuses de outras mitologias já os viviam, dando "o exemplo" e dando "mau exemplo".
Este homem usa o cinismo e tenta vencer o receio. Maquina sobre as figuras de estilo a usar para que a população do campo o entenda e o veja como um deles. Tenta fugir à sua morte porque ainda prefere vencer a contenda política de outra maneira.
Mas cumpre com tudo, rejeitando até o vinho que o anestesiaria no momento da crucificação para melhor e mais ardentemente sofrer as dores que estão por vir.
Tudo para deixar um legado inapagável. Tudo por convicção de que aquelas acções serão as que verdadeiramente farão dele imortal na memória da Humanidade.
Por isso devia o livro chamar-se "O Deus que era Homem" pois é da sua manha humana que se vale para se fazer divino aos olhos dos que lêem os relatos de Mateus, Marcos, Lucas e João.


 Jesus O Homem que era Deus (Max Gallo)
Edições Asa
1ª edição - Novembro de 2011
304 páginas

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