quinta-feira, 15 de março de 2012

Nada mais do que um homem e uma mulher

Não duvido que a fruição de Alabama Song será maior para quem conhecer a dicotomia que parece estabelecer-se entre Terna é a noite e Save Me The Waltz, as leituras ficcionais que Francis Scott Fitzgerald e Zelda Sayre fizeram do mesmo período do seu casamento.
Conhecendo o tipo de reacção e interpretação que cada um teve aos mesmos eventos, a invenção de uma nova verdade sobre a sua vida comum tornará o romance numa partilha emocional de possibilidades abertas sobre ícones cujos segredos o leitor já tendia a perscrutar.
Não tendo eu tal intimidade com a  história do casal, acabo por ver neste livro algo como um primeiro esboço da verdade que merece que procure ambos os romances que eles escreveram e, ainda mais, uma biografia objectiva sobre temas que são mais profundos do que umas quantas dezenas de páginas podem mostrar. (Se o chegarei a fazer é, claro, uma discussão inteiramente distinta da vontade assim despertada.)
Mas um esboço que é um retrato integral que sobrevive a qualquer grau de ignorância do leitor - que, estou em crer, nunca será tão grande assim que não conheça os traços gerais deste casal ou nem mostraria interesse nesta obra.
Este é um livro que tanto fala de duas personagens reais como constrói duas personagens por mérito próprio.
O casal Fitzgerald definiu os anos 1920 porque Scott Fitzgerald os escreveu e depois ambos trataram de os viver.
Essa construção de uma Era por via literária e vivencial é substancial a este livro porque marca a divisão principal entre a o tempo de maior e menos dignidade do casal.
A exploração da realidade na ficção de cada um torna-se o principal e definitivo motivo de confronto entre ambos, com ela internada como histérica e ele bêbado sem capacidade para escrever com a qualidade anterior.
Até que cheguem a esse ponto, a indistinção entre as vidas deles e as histórias dele era motivo de enorme prazer e com poucos problemas então sentidos.
Zelda tornou-se nun ícone do desafio das convenções roubando a atenção à sua volta. Francis Scott brilhava no convívio com a multidão aduladora.
Criavam e mantinham um estilo de vida mesmo quando já não o podiam fazer e, também porque viviam em excesso a criação que ele devia colocar em papel, começaram a ver a sua estrutura de casal desmoronar-se tão rapidamente quanto a forma de ilusão que os equiparava directamente à década em que se moviam.
O casal é tocado pela tragédia auto-infligida mas nesta história é sobretudo ela que fica mal tratada. Uma mulher a quem foi roubado tudos ao longo da vida, sempre de maneiras distintas mas sempre por via de subterfúgios dados ora como naturais ora como acidentais.
A reputação, um filho, o verdadeiro amor, a possibilidade de ser bailarina, a vontade de ser escritora. Tudo isto lhe foi retirado ao longo da vida. Em cada momento a crueldade subindo de tom mas com as marcas de cada perda adiadas.
Até que chega o momento em que não é o azar do destino que lhe retira o que ela tanto fazia por merecer (deixemos o talento de lado) e todas os dramas lhe caiem em cima mostrando que foram os homens - com prevalência do seu marido - que lhe custaram que seja uma carcaça tratada a choques eléctricos e não a bela mulher que encantava multidões.
A menina do Sul dos Estados Unidos da América subiu ao topo da fama mas, para tal, foi perdendo todas as aspirações que uma digna filha de Juíz, também porque a promessa de uma vida de topo que o Alabama lhe trazia aconteceria num lugar pequeno demais para ela.
Se teve culpa de começar a perder a sua hipótese de ser uma mulher independente como o espírito da época - que era, também, o seu próprio espírito - lhe exigia, foi o marido que lhe terminou com as aspirações no roubo maior: o da sua vida enquanto matéria escrita e o da sua matéria escrita enquanto moldagem da sua vida.
Alabama Song é, portanto, o apagamento de uma mulher de enorme dimensão por detrás do poder de um homem falhado.
Isso o torna mais do que um texto dependente da fama das figuras escolhida, antes tornando tal fama numa forma de evidenciar como este tipo de drama a dois era inevitável, fosse qual fosse o meio em que o casal estivesse inserido.


Alabama Song (Gilles Leroy)
Esfera do Caos
1ª edição - Novembro de 2008
176 páginas

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