segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Provérbios dos diabos

Será a linguagem o que mais leitores lembrarão deste livro, com a livre adaptação do narrador a cada conjunto de personagens que, por si sós, já fazem um uso abundante do vernáculo tal como ele existe dentro de casa ou no meio da rua.
A linguagem é bela, não haja dúvida, por existir já no limbo do arcaico (embora não devam ter passado mais de uma mão cheia de décadas sobre os últimos usos das melhores das expressões) que, por tal distanciamento, se torna novidade.
Esses traços da linguagem são  apenas os necessários para tornar as personagens retratos verosímeis. Mas retratos verosímeis dos malandros literários e não dos que existem na nossa pátria.
Por cá já nenhum é assim tão manso e tão matreiro. A violência substituiu a falinha, a cara tapada substituiu o disfarce aprumado.
Estes malandros literários - e malandros são eles todos, protagonistas do livro, que de uma ponta a outra não merecem senão censuras - correm para uma trama da qual as telenovelas, os romances de cordel ou os artigos de pasquim estão mais habituados a ocupar-se: um idoso com dinheiro no banco é o alvo de um grupo de burlões e de duas filhas com sonhos de viajar.
Seguindo de episódio quotidiano para momento de azelhice, os intentos de cada grupo esbarram nas dificuldades próprias de um país onde até para fanar ou herdar os empecilhos são mais que muitos.
O mundo criminal também tem burocracias que não ficam no papel, como ser filhas tem preceitos que não se aprendem em parte alguma.
Daí tantos falhanços e tantos meios entendimentos para as quais a estrutura em pequenos blocos de acontecimentos que nos atiram para diante, como atiram os personagens ora com uma palmadinha nas costas ora com um pontapé no rabo.
Adianto, sem medo de revelar nada que não se adivinhasse, que tudo caminha para um brilhante falhanço onde o velho não cumpre o seu papel de vítima na perfeição.
O dinheiro passou a expectativas goradas à medida que os malandros fugiam aos guiões estabelecidos.
Guiões dos quais todos têm de dividir os créditos com a sociedade que molda
Não há quem escape a ser censurado no final, o velho que desconfia tanto da família para se dar a  familiaridades com desconhecidos; os trafulhas tão afoitos nos seus planos com as suas limitações aventadas; e as filhas desejosas de outra vida tão desantentas a como criar uma relação com o pai.
Como não há quem escape a ver desfazer-se o seu sonho, a única recompensa possível para o ridículo de cada uma destas gerações que se põe a jeito de serem comentadas em público e expostas ao ridículo.
Se o título do livro faz uso de um provérbio, uso eu outros dois para concluir esta visão do livro, onde vemos que, de facto, todos os diabos são parecidos e é pouca a sorte que têm quando se aventuram por caminhos do alheio. Afinal de contas, os diabos que por aqui andam têm sempre um diabo maior vigiando, nem que seja o diabo do acaso da vida que nunca deixa a sabedoria popular por cumprir: o diabo dá com uma mão e tira com as duas.


Quando o Diabo reza (Mário de Carvalho)
Tinta da China Edições
1ª edição - Outubro de 2011
170 páginas

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