segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Escrever apesar da realidade

Talvez seja mera coincidência, mas para o leitor que casualmente faz o seu balanço de leituras é uma facto a assinalar que dois livros com origem nas Letras Espanholas acabem por reflectir sobre a linha que une a realidade e a ficção de um escritor.
No caso de O Dois Amigos tratava-se do avanço da vida ao ponto em que se torna indissociável do processo de escrita e, como consequência, a narrativa de feitura do livro entrelaça-se com a narrativa (re)criada.
No caso deste Verão trata-se do seu oposto prático, versando sobre um escritor que mexe com a narrativa da realidade para que tal desvende a narrativa que depois escreverá.
Se aqui o livro vem apenas depois, quando a realidade já está influenciada, não deixa de ser talvez mais acentuado o grau de abstracção em que vive o escritor.
A atitude do escritor aqui passa por escrever um "romance na realidade", ou seja, por lançar na vida de outros as bases do que poderáser um desenvolvimento romanesco que ele possa relatar assim fugindo ao bloqueio que o aflige.
O seu método de eleição é o envio de cartas em nome de uma figura há muito desaparecida do convívio do seu grupo de amigos.
Ele lança essa pedrada na existência pacífica do seu grupo de amigos porque só nele se encontra em posição privilegiada para obter a informação sobre progressos que ficariam escondidos se (como no primeiro teste que fez com o esquema) as pessoas usadas como peões fossem estranhos.
A total desconsideração pelos sentimentos alheios mede-se pela utilidade com que ele os vê, importantes no seu foro afectivo mas sacrifícios válidos ao que é, no final, o seu único estro e a única existência a que deve a sua lealdade: a escrita.
Aliás, esse jogo de moldagem é de tal forma egocêntrico e submisso que falha em ver as hipóteses de falha que todo o plano tem.
Crendo que todo o desenlace se revelará sempre, não espera que haja independência e privacidade. Para ele a realidade é já o seu cenário e os seus companheiros são as suas personagens.
Muito menos mede consequências que se concretizam sempre que o passado mexe com a construção pacífica que as pessoas fazem do seu passado para desembocar num presente satisfatório (no mínimo).
O acto de escrever como pulsão maníaca mas de uma falsa elevação racional torna-se aqui catalisador dos dramas reais. Porque a narrativa da realidade não se entrelaçou na narrativa ficcional, antes acabou perturbada por esta última.
Será injusto centrar toda a crítica em tal tema - de uma brilhante invenção ainda que nem sempre com uma concretização condizente - quando o autor tratou de construir um retrato de grupo que reflecte no preenchimento dos espaços em branco do passado privado e do Passado Histórico.
Um preenchimento que também se serve de formas de ficção pois, afinal, todas os pequenos apaziguamentos de consciência começados por Ele deve estar... são irrealidades confortáveis que transformam o entendimento da realidade sem dar conta das suas eventuais consequências.
Por esse método, mesmo se não tão descaradamente, todos os membros do grupo são em parte como o escritor no seu seio.
Só que, a fechar o romance, Manuel Rico lança a pista de um exercício de metalinguagem total que lança pistas para uma culpa do próprio leitor e das suas exigências também egocêntricas feitas ao autor para que este forneça novos temas e melhores ideias.
As pistas denunciam também que este pode ser, eventualmente, um exercício verídico até certo grau e a mera hipótese de tal é suficiente para reforçar o efeito sobre o leitor que sai com medo do seu papel nos desígnios a que o escritor submeteu as suas personagens... os seus amigos?


Verão (Manuel Rico)
Minotauro/Edições 70
1ª edição - Fevereiro de 2011
304 páginas

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