quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Detective escusada

O Vizinho começa mal para o leitor com o mínimo de exigência.
Não falo do primeiro capítulo, uma narração pela voz da vítima dos momentos que antecedem aquilo que lhe vai acontecer, mas do segundo que começa com uma descrição da forma como a (aparentemente) alarve e pouco exigente Sargento Detective D. D. Warren aborda um buffet.
Meia dúzia de páginas mais à frente, a descrição de um suspeito é resumida através da comparação à personagem de McDreamy e descrita através de um diálogo idiota entre ela e um outro polícia em que ele faz de conta que não conhece a série televisiva correspondente.
Talvez a culpa seja minha, mas não quero saber como uma mulher de Boston faz para encher a pança ao máximo antes de se sentir enfardada e muito menos quero ter de compreender as minhas personagens através de referências contemporâneas para as quais posso não estar capacitado.
Depois de tantos detectives de requintado gosto culinário, prefiro que os investigadores tenham um apreço especial por esta ou, então, que lhe sejam indiferentes e se nutram à base de sandes comidas no carro. Tal como prefiro que estes me descrevam os suspeitos da forma habitual.
E já que estou a dizer aquilo que gosto, gosto de personagens com nome próprio e não com duas iniciais que se lêem (no original) como "Didi" - cujas sugestões de origem são todas desprezíveis - e que passa muito tempo com falta de sexo - depois disto, continua a incompreensível mania das escritoras para com as suas personagens femininas...
Sendo que continuei a ler o livro, apesar de tudo, acabei por descobrir que esta detective nem sequer importa à história. Anda por lá mas a sua determinação é limitada pela necessidade de mandatos, a sua perspicácia é limitada pela sua falta de instinto e a sua eficácia é limitada pelo seu desconhecimento dos temas mais importantes envolvidos na investigação.
No final, ela nada resolveu nem nada se mostrou. Foi uma personagem que não foi capaz de apresentar um único traço de personalidade ou um único talento.
Compreendido que este policial não chega a ter uma detective, é possível olhar com algum tacto para ele.
Há uma variação de thriller aqui metido em que todas as restantes personagens envolvidas têm uma história passada conturbada e interessante.
São essas vidas passadas, todas repletas de traumas socialmente silenciados, que moldam as atitudes correntes das personagens.
Personagens que são, sem excepção, dúbias. Os traços do seu comportamento deixam-nos sempre indecisos quanto à avaliação de "bom ou mau" que teremos para elas.
O livro tem dois traços que procura tornar didáticos através dessas personagens: a pedofilia e a internet.
Há algumas reflexões sobre como o sistema penal olha sem distinção para todos os casos englobados na denominação de "pedofilia" e muitas explicações sobre os traços deixados por qualquer passagem pela internet e as formas de os descobrir. Não se alongam demais mas deixam alguma ressonância no leitor.
E tornam mais óbvio que não é pela investigação policial que este livro se torna interessante. Este deveria ser um drama centrado nas personagens e, eventualmente, nas suas fugas.
Claro, continuaria a ser um drama misturado com thriller, mas deixaria em pano de fundo e despersonalizada a investigação policial (como, afinal, já acontece) e aprofundaria mais os dois temas que tomou como centrais levando a exploração do passado das personagens ao extremo ao invés de os guardar para revelações finais.


O Vizinho (Lisa Gardner)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Maio de 2011
360 páginas

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