domingo, 31 de maio de 2009

A forma do conteúdo


Dá-se um caso estranho com A Virgem, que é na verdade uma espécie de director's cut que Luís Miguel Rocha agora lança de Um País Encantado.
Esse estranho caso prende-se com a relação confusa e errónea que gera a sua apresentação - capa, sinopse e título - com o seu conteúdo.
Lê-se na sinopse que A Virgem dá-nos conta do Portugal moribundo... na década de trinta., o que é verdade para este volume, mas não para o romance (completo) em si.
Afinal de contas, os volumes seguintes falarão do final da década de quarenta e dos meados da década de cinquenta.
Parece-me que o problema maior é o da confusão entre um projecto que se inicia e um livro concreto a vender.
Embora no exterior nada se anuncie, na folha de rosto está lá explícito que se trata aqui do Livro 1, ou seja, uma parte apenas de um romance maior, esse sim chamado A Virgem. Talvez fosse recomendável fazer com ele o que Proust fez com o seu Em Busca do Tempo Perdido e nomear cada volume no seio do título maior.
O problema é que foi preciso vender este livro, concretamente, como objecto único e, teoricamente, independente.
Daí que na sinopse se leia também ...o abuso de poder de alguns grupos priveligiados se passeia... com a cumplicidade silenciosa da Igreja., uma possibilidade que deverá ser verdadeira mas que aqui mal se intui numa passagem breve. Na prática, dá-se ao possível leitor uma ideia errada do que esperar deste livro.
Não admira, portanto, que à época, a Planeta Editora tenha dado a este livro outro título, porque o título que o autor sempre lhe quis dar não era justo nem lógico.


E continua a não ser, da forma que é apresentado. Ninguém poderá negar que A Virgem, quando considerada par a par com a sinopse, e por extensão com esta capa, não cumpre com as expectativas geradas.
Uma capa que é luminosa e atraente, mas que reforça uma ligação com a religião que não está tão presente no livro como se suspeita.
O subtítulo nem sequer parece lógico depois de lido o livro, apesar de uma ida a Fátima ou de um encontro entre o (de certa forma) protagonista e um cardeal.
Aquilo que aqui aconteceu foi um desfasamento entre o produto e o livro, entre a forma e o conteúdo.
Não será de excluir que muitos leitores se sintam enganados no processo, ainda que não queiram - ou, pelo menos, eu não queira - acreditar numa intencionalidade do acto.
Não direi, até por falta de conhecimento de causa, que a edição é um negócio fácil, mas que é preciso ter cuidado com aquilo que se faz, é sem dúvida, com perigo de alienar leitores que se prentendia conquistar.
A gritante preguiça - ou pelo menos o facilitismo - não são desculpáveis quando se trata de consolidar um projecto que, apesar de lidar com material antigo, é novo e assim deve ser encarado. Mesmo que isso seja feito para facilitar o processo de edição.
Afinal de contas, muito se resume a um reaproveitamento mal pensado, dado que a sinopse deste romance foi directamente recuperada da edição anterior, como poderão ler aqui.
Esse lapso, pequeno, de que muitos leitores não dariam conta, permite toda a análise feita acima e isso só é prejudicial à própria obra!

Um nascimento

A Virgem é escrita numa forma rebuscada, que o autor afirma ser aquela que era usada nos relatórios do tempo da "velha senhora".
Esse é, se quisermos assim chamar-lhe sem nenhuma forma depreciativa, um truque perspicaz.
Se no início a forma de linguagem intricada parece distanciar o leitor que tem de batalhar por entrar no ritmo de leitura, esse efeito passa depois a um verdadeiro gosto por esta linguagem rica e intricada.
E é essa linguagem que acaba por conseguir gerar o efeito de crítica humorística de quem vê a sociedade à sua volta e a espicaça sem deixar de tentar ser servil e apologético para não se prejudicar e poder continuar a contar a história.
No entanto, é também essa forma servil e apologética da linguagem que leva a alguma redundância de informação ao mesmo tempo e alguma irritação.

Para lá desta forma de linguagem, que acaba por ser a mais marcante componente deste livro, aquilo que encontramos é uma longa introdução a um romance mais completo.
Aqui falam-se das famílias e das circunstâncias sociais que levaram ao nascimento e, eventualmente, levarão à compreensão da personagem que dá nome a este volume.
Mas isso é, de certa forma, insuficiente, para que este livro se aguente sozinho, até porque a Virgem nunca ultrapassa os meses até ao final do livro - daí que se estranhe que anteriormente ele tenha sido editado como um romance completo.
Há vários episódios interessantes e importantes, capazes de caracterizar os anos do início da década de 1930, mas para as famílias que aqui se cruzam ainda falta um longo caminho a percorrer.
As suas lealdades, ligações, hipocrisias e idiossincrasias darão uma ideia mais precisa do que foram aqueles tempos devidamente desenvolvidas.
Por isso é que Luís Miguel Rocha anuncia já o seguimento a este Livro, 1 embora o salto temporal seja de 15 anos, espera-se que haja, como neste livro, analepses para nos contextualizarem.
A Virgem não é - por agora, possivelmente - um grande romance, mas o resultado final poderá ser, sobretudo em comparação com outros livros recentes com iguais pretensões, suficientemente interessante e eficaz.


















A Virgem (Luís Miguel Rocha)
Mill Books
1ª Edição - Abril de 2009
páginas

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Homens...

Aquilo que aqui encontramos não é um romance, mas antes uma sequência, um pouco críptica e de misteriosos efeitos.
Constituída por pequenas sequências - algumas ficções, algumas exposições linguísticas e histórias, alguns extractos da Eneida e da Odisseia - que ganham um estranho sentido à medida que lhes lemos as interligações.
É no espaço entre cada sequência, o espaço em branco que só o leitor pode completar, que compreendos as implicações que cada sequência tem na outra; como a história de um homem que numa viagem de negócios acaba rendido ao corpo de uma prostituta menor de idade pode levar à compreensão de como a escolha da palavra pussy por parte das mulheres para definirem a sua genitália lhes devolveu o poder que sempre tiveram sobre os homens que as tentavam diminuir apelidando-as com uma palavra derivada do que em latim significava "cão".

Miúdas trata-se de um retrato da condição ridícula, triste e iludida do homem.
Uma condição perene, ou não se perscutasse já nos grandes poemas épicos gregos.
Como mesmo um homem cheio de poder (económico, por exemplo) se rende perante esse poder ilusório de domar - preverter, conspurcar, abusar, escolham a palavra ao vosso próprio gosto - uma miúda e a sua condição (falsa, por vezes, é certo) de fragilidade.
Mas o verdadeiro poder é dessas miúdas, de reduzir o homem à sua própria condição de risível, fraco e previsível animal.
E o poder de Miúdas é de o tornar evidente de uma forma irónica e clarificadora, de certa forma redentora- ou, pelo menos, purificadora.


















Miúdas (Nic Kelman)
Bico de Pena
1ª Edição - Abril de 2009
160 páginas

terça-feira, 26 de maio de 2009

Ficar sedento

Sangue Fresco é uma inovadora e perspicaz forma de abordar as histórias de vampiros.
Pelo seu cenário ou pela forma como estabelece relações e hierarquias entre vampiros.
Pela riqueza do universo fantástico circundante ou pela aglomeração de géneros - thriller policial, por exemplo - num todo coerente e empolgante.
Mas, sobretudo, pela sua reflexão social em pano de fundo.
As implicações sociais da presença de vampiros no seio das comunidades humanas reflectem temas que vão do racismo à desagregação familiar ou da mudança de comportamentos sexuais ao tabu vigente em sociedades mais fechadas.
Os vampiros como representantes de minorias e como despoletadores de comportamentos tipicamente humanos, dignos de nota e reflexão ou, se preferirem, entretenimento desafiante.

Não há aproximações certeiras que se possam fazer a não ser com alguma banda desenhada.
Fazendo (boa) literatura com tais temas sociais com pano de fundo e com tais tramas romanceadas como chamariz seria algo difícil de antever, mas assim acontece.
Mas tudo isto gera uma história que nos mantém entusiasmados e seduzidos pelo seu romance, pelo seu policial e pelas suas inúmeras possibilidades dentro do género de fantasia.
A escrita simples de Charlaine Harris, lógica perante as personagens que se apresentam, serve como um trunfo, pois é eficaz e ritmada.
Mais do que isso, à medida que as páginas progridem, a escrita ganha mais versatilidade e dinâmica, além de qualidade. Pelo final do livro, a escrita deixa-nos sedentos por mais.
Cá esperamos por mais Sangue Fresco!


















Sangue Fresco (Charlaine Harris)
Saída de Emergência
1ª Edição - Abril de 2009
272 páginas

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Policial ou não

A Paciente Misteriosa poderia ter sido um ágil e breve policial ou um complexo mosaico onde as personagens se aproximam e repelem por intricadas teias.
Mas como fica provado, não poderia nunca ser ambos.
O policial desenvolve-se de forma demasiado lenta, sem ritmo.
A culpa é, sobretudo, do extenso primeiro capítulo, que desenvolve as personagens dando informação que será inútil à investigação que se segue, simplesmente porque ela é de novo revelada à medida que esta se desenvolve.
Já as intricadas teias que se criam parecem, no sentido do policial, implausíveis e em muitos momentos as suas acções parecem forçadas para fazer persistir o policial.
Se essa obrigação estivesse ausente, seria possível ter muito mais interesse no grupo que se criou em torno do solar que os uniu e das secretas relações e implicações que a paciente misteriosa revelará pela sua aparição e morte no solar.
P. D. James não perdeu, de todo, o seu talento. Apenas deverá agora progredir e largar o formato policial que sempre a caracterizou, assumindo o formato de composição de grupo que parece agora ter abraçado.

Não poderia acabar sem fazer um pequeno reparo, ainda que não gravoso.
Apanham-se ao longo do livro - embora em diminuição ao longo do mesmo - diversas gralhas que mais não são do que palavras que ficaram abandonadas quando algumas frases foram revistas e refeitas na sua tradução portuguesa.
Há momentos em que o ritmo de leitura se quebra por termos de parar e rever a frase à conta disso, o que é pena.


















A paciente misteriosa (P. D. James)
Publicações Europa-América
1ª Edição - Abril de 2009
344 páginas

domingo, 24 de maio de 2009

O valor do objecto


As Cozinheiras de Livros fala do valor que tem a escrita, que tem quem escreve para os leitores, que tem cada livro.
Fala do cuidado que precisamos de lhes dedicar, do respeito que não podemos deixar de possuir
No fundo, dá uma lição divertida sobre como devemos saborear e apreciar cada palavra que lemos e cada livro que possuímos pois será sempre único.
Ao mesmo tempo, As Cozinheiras de Livros obriga, também, a um manuseamento intenso do livro como objecto.
Com páginas "viradas de pernas para o ar" ou texto escrito ao alto da página, com palavras que são representadas em efeito do seu próprio significado, os leitores são obrigados a manipular o livro para lá do simples virar de página.
O contacto com o livro aumenta, diversifica-se.
A leitura ganha um sentido mais compreensível, mais real, sem deixar de lado a sua própria inventividade.
E isso ganha ainda mais intensidade quando tudo se conjuga com a artesanal (e deliciosa) arte das imagens que acompanham o texto. Poderiam ser feitas por nós, por isso o livro se torna ainda mais nosso.
Só lamento que os efeitos de manipulação das palavras não sejam ainda mais intensas ao longo do livro, pois são divertidíssimos.
Na sua conjugação, do seu conteúdo que dá valor à essência da escrita e da sua forma que dá valor ao objecto que é o livro, temos aqui uma obra que poderá conquistar uma imensidão de futuros e sistemáticos leitores que cuidem do livro com o mesmo amor que muitos de nós já lhe dedicam.
Se por mais não fosse, este livro teria um valor inestimável por isso mesmo.


Por não saber se as minhas palavras descreveriam com o efeito devido o trabalho deste livro, deixo a reprodução de pormenores de duas páginas do livro a acompanhar a recensão.
Espero que, ao menos elas, surtam o efeito de levar a que leiam e ofereçam este livro.


















As Cozinheiras de Livros (Margarida Botelho)
Editorial Presença
1ª Edição - Dezembro de 2008
40 páginas

Se todos fossem assim...

D. Simoa Godinha vai a enterrar.
Assim abre este magnífico romance, com uma frase memorável na sua simplicidade directa e pertinente.
Uma frase que encabeça um parágrafo que nos contextualiza logo no tempo em que vamos seguir. Um parágrafo que nos dá conta do ambiente, dos acontecimentos e das reflexões que rodeiam o enterro de D. Simona Godinha.
Admirável a vários níveis esse primeiro parágrafo - demonstração certeira do que nos espera na obra.
Muito bem escrito, escorreito e livre de excessos, mas riquíssimo em detalhes.
Se todos os primeiros parágrafos fossem assim...

Ana Cristina Silva, que na badana vem referida como autora de diversos romances dos quais, infelizmente, nunca tinha dado conta, tem uma verdadeira inspiração neste livro.
A maneira como enceta a história desta mulher, uma recriação romanceada de uma mulher autêntica da qual se sabe muito pouco, é intrigante.
Dona Simoa Godinha confessa-se a uma afilhada púdica e, por isso mesmo, o choque das suas ideias ou as confissões que faz apenas quando ela dorme, caracterizam-na não apenas a ela mas ao próprio século XVI em que viveu.
No leito da morte, é a própria Dona Simoa Godinha que reconta e revê a sua vida.
Que julga e se arrepende, que se orgulha e deixa como aviso à geração que a segue, cada um dos seus actos.
Se todas as vidas fossem assim...

E dessa maneira, em pouco mais de 160 páginas, a escritora visita Lisboa, São Tomé, o século XVI, as considerações morais sobre a escravatura ou as maquinações típicas da poderosa Igreja, sempre de forma rica e verosímil e sem nunca esquecer a surpreendente a admirável personagem central.
Um belo romance, lapidado até à sua melhor forma!
Se todos os livros fossem assim...


















A Dama Negra da Ilha dos Escravos (Ana Cristina Silva)
Editorial Presença
1ª Edição - Abril de 2009
176 páginas

quinta-feira, 21 de maio de 2009

E Hemingway disse...

Quer fazer boa figura citando um grande autor sobre temas variados?
Quer um livro de auto-ajuda intelectualmente aprovável?
Quer um guia ocasional de frases inspiracionais?
Quer realizar psicanálise com as frases corriqueiras de um grande autor literário?
Então leia este livro!

O livro com citações privadas e mundanas de Hemingway, compiladas por um seu amigo que muito o acompanhou e que as foi recolhendo em todo o género de pedaços de papel, sugere, para o bem e para o mal, este anúncio acima, como que feito pelo apresentador de um canal de televendas.
A boa vida segundo Hemingway junta imagens - algumas inéditas e profundamente pessoais - do homem com citações suas a propósito de temas que vão da escrita à caça ou do cinema à morte.
Algumas são boutades, outras contradizem-se entre si, outras valem realmente a página em que estão inscritas.
Há apontamentos interessantes que nos dão, de facto, uma visão mais particular do homem e do escritor; outros simplesmente são desnecessários e mais vale ignorá-los antes que percamos a nossa admiração por quem Hemingway foi.
São, claro, questões de pormenor que podemos enriquecer pelo conhecimento da sua obra.
O livro é, no fundo, uma curiosidade, um entretenimento, um jogo de reconhecimento das ideias que tínhamos dele.
Afinal de contas, um livro de citações assim esgota-se mais rapidamente do que uma das obras que ele deixou ao mundo. Que sirva, ao menos, para que alguns reencontrem o que ele escreveu por via do que ele disse.

Não posso deixar de fazer um reparo a esta capa.
Na ânsia de tornar (ainda mais) chamativa a figura de Hemingway, criaram em torno da sua fotografia uma espécie de representação kitsch de religiosidade.
Hemingway não era, propriamente, uma figura de beatíssima veneração para que o aureolassem desta forma.
Pedia-se aqui mais sobriedade perante a imagem que escolheram ou mais arrojo para fazer capa com uma das fotografias aventurareiras de um homem que escreveu mas também experimentou o mundo!

E antes de concluir ainda tenho de assentar algumas palavras sobre a tradução.
Apesar de não ser assinaladamente problemática, nota-se que foi feita por alguém com um domínio meramente suficiente do inglês e do português.
Digo isto pois a tradução não incorreu em erros sistemáticos, mas apresentou falhas como - e são apenas alguns exemplos - a colocação de "de mais" no lugar de "demais" e a tradução de "toda a sorte de coisas" perante aquilo que imagino ser o original "all sort of things".
São elementos pequenos mas suficientes para colocar em causa o trabalho levado a cabo.


















A boa vida segundo Hemingway (A. E. Hochner)
Casa das Letras
1ª Edição - Novembro de 2008
130 páginas

terça-feira, 19 de maio de 2009

A premissa que não foi

A mulher que Deus (verdadeiramente) criou revela-o como um homem pleno de desejo e engenho.
Ela é o que cada Homem queira que ela seja - hoje Rita Hayworth, amanhã Cleópatra e assim por diante - porque Deus quer companhia, mas não quer restrições.
Mas esta mulher quer vingança pela falta de amor e nada melhor do que algumas ogivas nucleares prontas a usar durante a Guerra do Golfo.
A premissa, arrojada e complexa, cheia de possibilidades, recria a História com a sua ponta de Fantástico, incutindo-lhe ironia e humor num (quase-)thriller.
A premissa, arrojada e complexa, cheia de possibilidades, exigia uma mão firme e precisa.
Mas a mão não o é suficientemente.

Lail-Ah, o Divórcio de Deus pisa muitas vezes os caminhos certos, mas outras tantas resvala.
A ironia desmistificadora da dinvidade surge em momentos conseguidos que colocam Deus ao nível dos homens ou vice-versa. O humor que se bate frontalmente com o leitor segue-lhe os passos.
Só que o thriller, aquilo que deveria ser a desculpa unificadora de uma brincadeira salutar mas não menos arriscada, acaba por comandar demasiadas vezes a globalidade do sentido deste livro.
E como thriller, convencional convenhamos, tem falhas evidentes, episódios desconexos que se permitem esquecer personagens importantes, Lail-Ah acima de todas as outras.
No global, a premissa é o que de melhor tem este livro e isso é uma pena.

Não poderia acabar sem uma nota de apreço à bela capa.
Não só pela figura ruiva que sobressai (perdoar-me-ão a nota pessoal de apreço ao longo desta crónica a tal cor de cabelo), mas por toda a sua composição cuidada, das cores aos detalhes.
O autor da capa mostra o seu trabalho nessa área aqui.


















Lail-Ah, o Divórcio de Deus (H. James Kutscha)
Mill Books
1ª Edição - Janeiro de 1998
176 páginas

domingo, 17 de maio de 2009

Sob a capa do desrespeito

A capa de um livro é uma arte, o que bem fica demonstrado pelos recentes Prémios Edição Ler/Booktailors.
Por isso mesmo é tão nocivo ver como a Gradiva tratou a capa do seu mais recente sucesso, A vida num sopro.
O autor da capa (lamento não lhe referir o nome, mas já não tenho o livro comigo) pensou-a e montou-a com cuidado suficiente para não ter de a ver mutilada por um grande autocolante que alardeia o número de exemplares vendidos.
Por algum motivo se inventou há tanto tempo a cinta vermelha que clama por atenção só para depois ser insensivelmente deitada ao lixo.
A condição temporária da sua publicidade deixa imaculada a arte da capa, respeitando o seu autor e deixando ao leitor a decisão da sua conservação.
Porque, querendo ou não, o autocolante também desrespeita o leitor, que não arriscará deixar restos de cola e de papel agarrados à capa.
E desrespeita-o quando o obriga a exibir na rua publicidade pela qual ninguém lhe paga. Não é culpa do leitor que a primeira - e a segunda e a terceira e a quarta... - edição se tenha esgotado antes que as engrenagens da sua vida lhe tenham permitido comprar o livro.

Sobrecapa do livro

Mas sobretudo, o desrespeito pelo leitor vem da sugestão falseada que faz do que se poderá ler.
A sobrecapa propõe um reencontro com os mitos profundos da Hollywood clássica, uma partida em direcção a um destino desconhecido, a tela que se fecha para que se abra a imaginação, uma paixão digna de Lauren Bacall abandonada ali na estação.
Já a capa sugere uma vida discorrendo no seio da teia de uma Era intrigante da vida portuguesa, num retrato social de grande fõlego.
O que se encontra, afinal de contas e como já disse antes, é um romance de cordel demorado e pobre.

Capa do livro

Devia o leitor poder devolver o livro à proveniência só por a capa enganar tão vergonhosamente.
Não se julga a um livro pela capa, mas o inverso já fará sentido.
E se a capa é despropositada, podemos sentir-nos humilhados e ofendidos (perdão caro Fiódor) por termos sido levados por ela - ou, no mínimo, com ela - a esperar de um livro aquilo que ele não nos deu!

sábado, 16 de maio de 2009

Caminhos da memória

O Regimento dos Espectros é contado na primeira pessoa naquilo que podemos apenas chamar de um longo relato de memória onde pensamentos, acções e diálogos seguem encadeados como um único e extenso fio.
Mas um fio que, naturalmente, começa num novelo, mas surpreendentemente também acaba num outro.
Trata-se de um pedaço de memória perturbado e perturbador, onde presente e passado se enredam e onde apenas conseguimos descortinar algumas das voltas que compõe tais novelos, sem nunca lhes ver o âmago.
Ficamos sempre a meio caminho de ambos, numa estrada de questões. Uma estrada que nos interessa, onde permanecemos entre avanços e recuos, mais intrigados do que perdidos.
A tudo isto não será estranha a vocação psiquiátrica de Lydie Salvayre, que consegue fazer um retrato das hesitações, idiossincrasias e perturbações que marcam um indivíduo.
E consegue-o sem descair no facilitismo de fazer uma tese comportamental ou um compêndio de sintomas.
Fá-lo com talento, cuidado e singularidade, revisitando a Mente, a História e a Sociedade do seu país.


















O regimento dos espectros (Lydie Salvayre)
Terramar
1ª Edição - Março de 1998
154 páginas

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Deliciosa perdição

A terrível e saborosa submissão ao desejo é uma vitória cruel e uma deliciosa derrota.
Os jogos de sedução, de que a Lola que cada um de nós encontra é capaz, são sofrimento, castigo, tortura. São, no fim de contas, compensações ténues que aceitamos com tanta insaciedade.
Como se só da crueldade - mútua, que nenhum castigo deixa de marcar ambos os corpos - nascessem sentimentos mais sinceros e pungentes.
Sim, certamente resistimos, forçando-nos a ser lógicos, desprovendo-nos de emoções, como se fôssemos os nossos próprios mestres.
Mas não há autodomínio que vença a inabalável vontade de nos rendermos nas mãos de quem não conseguimos entender, mas por quem sentimos sem medida.
O livro, um relato feito com toda a lógica, quase um relatório consciencioso, não consegue esconder a natureza sedutora e irresistível da mulher que está por detrás de tanto infortúnio.
O livro, como o próprio ser humano bem sabe, demonstra que a força da razão perderá sempre para o mistério da emoção.
Lola é a insinuação da perdição de cada um de nós.

Mas mais do que as minhas palavras, é a voz lânguida, insinuante e lúbrica de Sarah Vaughan que tão perfeitamente resume este livro, ainda que a canção não fale desta Lola.
Talvez, no final de contas, todas as Lolas sejam assim...




















Um obscuro objecto de desejo (Pierre Louys)
Bico de Pena
1ª Edição - Abril de 2009
112 páginas

domingo, 10 de maio de 2009

Da vida que poderia ser


O Caderno Secreto de Leonardo é um livro riquíssimo. Um livro completo, arrisco dizer.
O seu retrato de Leonardo é quase vivo, quase palpável. Leonardo é complexo, o seu drama amoroso não é um mero fait divers, é uma importante componente daquilo que vivemos a seu lado. As suas acções definem a sua essência e definem um rumo que se vai criando perante nós. Ele é homem tanto quanto é artista, rende-se à incerteza dos seus sentimentos tanto quanto explora a precisão da engenharia.
A existência da Florença, terrível e fascinante, ameçadora e irresistível, é uma certeza. Cada parágrafo que Jack Dann lhe dedica transporta-nos sem esforço para uma realidade que acabamos de descobrir mas nos parece familiar.
As personagens que orbitam neste mundo, inimigos e amigos de Leonardo, entre outras personagens largamente dúbias, são igualmente fascinantes. Não são meros joguetes, não compõe um tempo com a sua mera referência. Antes existem ali, complementando o retrato do protagonista com a réplica de vida que lhe dão!
E quando as máquinas que nos habituámos a conhecer dos esboços de Leonardo passam a ser objectos reais e poderosos nas páginas do livro, quando ganham aplicação, não podemos deixar de sentir um súbita estupefacção pelo seu potencial.

Tudo neste livro tem uma vida que não é negligenciável, antes é a prova de uma verdadeira dedicação a uma personagem, a uma era e a uma hipótese. É uma prova de como nenhuma personagem se esgota senão pela extinção do nosso entusiasmo.
O prodígio do que consegue vem da maneira como torna Leonardo numa personagem que nos interessa sem ser necessário apelar ao seu papel na História, nem na sua mitificação.
Claro, é tudo um jogo de imaginação, um "então e se..." que, agradavel e surpreendentemente, poderia realmente ter sido e, por isso mesmo, nos leva a interrogar o nosso próprio entendimento de Leonardo.
Delicioso por isto tudo e por mais ainda, que só lendo se pode perceber.

Não poderia acabar sem referir a excelência da tradução.
Feita por David Soares, ele próprio escritor e bedéfilo de créditos firmados, empenhou-se verdadeiramente, tornando a obra um pouco sua.
As suas notas de tradução chegam a corrigir os (pequenos) enganos do autor e demonstram a sua erudição e talento.
A combinação da obra com o seu tradutor foi um encontro perfeito.


















O caderno secreto de Leonardo - Tomo I (Jack Dann)
Saída de Emergência
1ª Edição - Março de 2009
336 páginas



















O caderno secreto de Leonardo - Tomo II (Jack Dann)
Saída de Emergência
1ª Edição - Abril de 2009
288 páginas

domingo, 3 de maio de 2009

A telenovela num sopro

José Rodrigues dos Santos não é um mau escritor.
Quando o li pela primeira vez, em A Fórmula de Deus, fui surpreendido pela agilidade da intriga.
Pedi, logo de seguida, a quem me tinha emprestado esse livro - dizendo que me interessaria pela sua temática - os outros dois protagonizados por Tomás Noronha. Aquilo que encontrei foi uma repetição exacta da fórmula narrativa e uma constante rememoriação dos mesmos dados e das mesmas informações.
Mas acima de tudo, aquilo que encontrei foi um escritor que não consegue abstrair-se da sua condição de jornalista, obrigado que está a incluir minuciosamente toda a investigação que fez, incapaz de filtrar o que apenas atrapalha o romance.
Isso fez de O Codex 632 um camuflado ensaio, insistente e aborrecido, e de O Sétimo Selo um aviso que cai no campo do absurdo de um filme-catástrofe.
O porquê de ter voltado a este escritor prende-se, possivelmente, com um incontornável desejo de afundar-me numa certeza de falhanço, que me permitisse zurzir no livro em convívio social.

Depois de terem sido indulgentes com esta introdução, falemos do livro.
A vida num sopro é largamente diferente dos títulos que lhe conhecia.
A vida num sopro é, no fundamental, uma (tele)novela tornada livro.
O seu desenvolvimento, na essência um boy meets girl, looses girl, finds girl esticado até aos limites, pretende ser ao mesmo tempo um retrato de Portugal durante a década de 1930.
Mas na sua estrutura em partes, separadas no tempo e fundamentalmente episódios que no seu acaso determinístico discorrem a trama do par central, ficamos mais pertos de ver um postal-resumo de Portugal, vazio de complexidades mas rico em episódios-choque.
O mais perto que A vida num sopro está do tal retrato de uma época acontece nas páginas dedicadas à Guerra Civil Espanhola, que decorrem com inusitada economia de meios e riqueza de detalhes verosímeis.
O resto do tempo, mesmo quando a trama não é previsível, é largamente denunciada.
Como o protagonista anuncia desde muito cedo, para ele viver é sofrer e o livro está decidido a demonstrar isso mesmo até ao fim, com todos os seus (grandiosos) infortúnios.
Há muitos romances portugeses, bons romances portugueses, com tal inclinação para o melodrama barato, mas são mais ricos na sua atmosfera e, sobretudo, escapam à limitação maior de A vida num sopro, ser escrita sobre a influência das obras visuais do nosso tempo.
Será provável que, em breve, A vida num sopro dê origem a "uma grande produção televisiva".
O seu conteúdo e a sua forma estão mesmo a postos para isso.


















A vida num sopro (José Rodrigues dos Santos)
Gradiva
5ª Edição - Novembro de 2008
616 páginas

sábado, 2 de maio de 2009

Tempo de feira

Não tenho acesso a dados estatísticos, nem posso com justeza fazer uma avaliação peremptória da 79ª Feira do Livro de Lisboa.
Por isso mesmo limitar-me-ei a alguns apontamentos de opinião sobre o assunto, após ter lá passado o dia 1 de Maio.

Em tempo de crise - e em qualquer outro tempo, confessemos - espera-se que a Feira seja um bazar de genuínas oportunidades e uma confluência de vontades - a de comprar e a de vender.
Não parece ser o caso (generalizado) desta Feira.
Em muitas livrarias pratica-se ao longo do ano descontos que superam muitas vezes os costumeiros 10% e não é raro ver "promoções", "feiras" ou "oportunidades" lançadas a vulso em diversos meses.
Para que as pessoas se apressem a comprar em quantidade, como só a Feira do Livro possibilita e incentiva, é necessário apresentar argumentos de atração inegável.
Esses argumentos costumam ser dois.
O primeiro, o do reencontro com títulos para os quais as livrarias já não guardam espaço quando a avalanche de novas capas as invade ou de iniciativas verdadeiramente intrigantes.
O segundo, promoções de encher o olho, inquestionáveis e apelativas.
Falemos então desses argumentos olhando para casos particulares, das editoras que mais atenção me mereceram.

Começo com a Presença e os seus múltiplos e grandes pavilhões.
As novidades da Presença apresentavam-se, geralmente, com 10% de desconto. Se não se espera nunca que as novidades sejam desbaratadas, a verdade é que os míseros 10% - que se encontram em qualquer livraria de grandes dimensões - surgem como pura arrogância de quem sabe que "faça o que fizer" irá vender.
É uma forma não declarada de desrespeito ao cliente e cria uma sensação de desconforto que se reflecte na abordagem a outros títulos, que ao contrário das novidades não têm direito a destaque mas têm já direito a desconto.

Da Cavalo de Ferro, lamento que tenha sucumbido ao mesmo mal.
Em anos anteriores era este o pavilhão em que gastava, alegremente, mais dinheiro, mas simultaneamente era mais recompensado.
As promoções da Cavalo de Ferro eram o que de mais parecido havia com o espírito feirante, reunindo "pacotes de autores" que permitiam trazer toda a bibliografia disponível por uma fracção do preço ou descendo os preços individuais dos títulos de fundo de catálogo na razão inversa do número desses que trazíamos connosco.
Só mais tarde, ao chegar a casa, associei as coisas e compreendi o porquê da Cavalo de Ferro não ter um pavilhão exclusivo nem promoções costumer friendly, ter sido comprada por um outro grupo editorial.

Falando em grupos editorias, abordemos a Leya, cuja teimosia do ano passado tem obrigado a uma interessante evolução geral.
Ao criar o seu próprio espaço, a Leya consegue gerar um fluxo de pessoas dentro da sua própria diversidade.
A centralidade das caixas, apesar de fazer aumentar o tempo dispendido nas bichas para pagamento, tem também o condão de fazer a pessoa circular mais antes de lá se dirigir.
No entanto, o sistema de loja, com alarmes e segurança precisa de ser revista, pois contraria o acolhimento e o envolvimento do espaço.
O facto é que o serviço de caixa é deficiente e não retira as bandas magnéticas aos livros, levando a que muitos dos clientes pagantes façam disparar o alarme e sejam abordados à saída pelo segurança para serem (ligeiramente, é verdade) revistados - situação directamente vivida por mim, também. No entanto, é estupidamente - e emprego este advérbio em plena consciência - fácil sair do espaço com livros por pagar - situação já não directamente vivida por mim, descansem as consciências - bastando para tal alguma paciência.
Mas dado que a Leya tem a seu favor a multiplicidade de "livros do dia" (com o costumeiro desconto de 40%) que se contam aos três por cada pavilhão, além de uma promoção generalizada que permite trazer 4 livros pagando apenas 3, o incómodo é esquecido por quem pretende, acima de tudo, ler.


Escuso-me a continuar a dissecar as minhas visitas aos pavilhões, com medo de que me vejam como um queixoso Tio Patinhas, para falar do que referi como primeiro argumento.
Há casos exemplares que este ano apostaram nele, tirando bom partido dos bem mais acolhedores pavilhões que se estrearam.
A Tinta-da-China, com a sua muito apelativa decoração - bem consoante as suas edições - e a sua associação à Penguin Books, da qual anunciou centenas de títulos a preço apetitoso, é um exemplo de valorização inquestionável.
Já na Praça Leya - e se a refiro duplamente de forma elogiosa é por achar que assim deve ser e não por disso me advir qualquer benefício - a oferta cultural, entre debates, workshops e concertos, e a oferta de entretenimento infantil, com teatros de marionetas e a dupla Astérix-Obélix em tamanho real, tem-se o gosto máximo do que a Feira deve contemplar além do livro.
Afinal de contas, a Feira do Livro é, acima de tudo, uma feira.
O seu tema central será o livro, mas este tem de vir complementado, pois é preciso satisfazer um público, muitas vezes familiar, que ali se dirige para passar algum tempo, a par dos que correm ao sabor dos livros.
Por reacção, então sim, esse público será tambem levado a comprar alguns itens.
É necessário apostar mais na interacção, para ambos os públicos, o especializado e o ocasional, talvez mesmo com maior acutilância para as crianças.
Assim se estranha que os dois palcos preparados para debates, onde a proximidade entre editores/autores e público é grande, se vejam desabrigados contra a voz feminina que anuncia os destaques do dia, sobrepondo-se ao que se pretende ali ouvir.
Mas também se reconhece o valor dos ateliers que a rede de bibliotecas preparou para as crianças darem lugar à sua criatividade e relação com o livro.
Afinal de contas, a Feira do Livro é, acima de tudo, uma feira, como as roulottes de bifanas e de churros bem demonstram.


As fotos que acompanham este texto foram desavergonhadamente retiradas do blog Blogtailors.