sábado, 5 de setembro de 2009

À luz de um escritor

San Gerolamo scrivente de Michelangelo Merisi da Caravaggio

Gosto demasiado de Camilleri para que quando, neste Verão, dou com um exemplar de um livro dele perdido numa livraria não me martirize por não ter notado que o livro tinha sido publicado.
E com razão pois esta pequena pérola, que se afasta rapidamente do rumo (expectável) de policial, tem a força da visão particular de um artista sobre outro e, por isso mesmo, de trazer à discussão novas percepções que nos escapariam.
Camilleri coloca-se como personagem perante um diário nunca visto de Caravaggio, com um tempo limitado para transcrever tudo o que quiser.
Com esta táctica, Camilleri fica à vontade para construir um pequeno relato críptico da degenerescência de um génio, da luz negra que recai sobre ele à medida que Caravaggio pinta algumas das suas obras mais fabulosas
A invenção do chiaroscuro pode ter sido, afinal de contas, apenas uma expressão da forma como Caravaggio via o mundo, escurecendo em torno da luz do sol que o feria.
Uma paranóia crescente e uma alucinação doentia podem não ter sido o preço do seu brilhantismo, mas antes o combustível que o alimentou.
Olhando para algumas destas obras - reproduzidas no livro - de uma forma tão peculiar e distinta por via das palavras de Camilleri não pode deixa de contribuir para que as olhemos com renovada atenção, querendo descobrir o que nos indicia.

Mas há um outro olhar que vale a pena destacar, não o do escritor sobre a obra do pintor, mas o do escritor sobre a personagem do pintor.
Ao colocar a sua personagem a falar das suas opções na escolha dos pedaços de texto a transcrever, vamos percebendo o que verdadeiramente distingue um escritor dos restantes.
Saltando sobre os dados importantes, sobre as confissões bombásticas, sobre os podres suculentos, o escritor vai directamente aos pequenos pedaços de confissão que revelam a queda da personagem que o escritor ali encontrou.
Caravaggio, naquele diário, não é um famoso pintor com uma obra de interesse global. Ali, a sós com o escritor, Caravaggio é uma personagem descoberta, é um pedaço de história a precisar de ser contada.
À luz de Camilleri, Caravaggio e a sua obra são agora novidades para nós, mesmo que já as conhecessemos bem.


















A cor do sol - Os mistérios do Caravaggio (Andrea Camilleri)
Bertrand
Sem indicação da Edição - Setembro de 2008

112 páginas

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